Ele passou o dia recolhido em si.
Gastou muitas horas conversando
com os eus perdidos na sua memória e com os outros.
Se lembrou de muitas coisas
vividas pelos vários eus, em vários momentos. Ficou nostálgico. Até chorou num
dado momento! Mas tudo acaba. Esgotaram-se os eus a serem rememorados. Até a
memória tem um limite de recriação. Aí ele procurou a companhia dos outros que
moram dentro dele.
Gastou um tempão conversando com
dois deles. Mas antes de conversar com os outros, ele teve que resolver um
pequeno problema. É que ele quis saber quem eram os outros que viviam dentro
dele.
“Mas quem são os outros?”,
perguntou a si mesmo em voz alta. E continuou: “Os outros não existem. Os
outros são invenções minhas. Os outros são variações de mim mesmo dentro de
mim!”.
Instaurou-se nele um impasse
momentâneo, que foi resolvido logo em seguida: “Os outros são pessoas que,
embora tenham um corpo físico no mundo, moram dentro de mim. Eu crio essas
pessoas dentro de mim, mas faço isso de acordo com o que vejo no mundo externo.
Sem estímulos externos não posso criar nenhum outro. Por isso, eles são
diferentes de mim”.
Depois que resolveu o problema da
identidade dos outros, começou a conversa.
Primeiramente conversou com o TB,
com quem tinha conversado externamente, isto é, no mundo físico, no dia
anterior. Aquela conversa cheia de conflito não acabou ali. O TB que mora
dentro dele veio à tona e puxou o assunto novamente. Apresentou outra vez os
argumentos absurdos do dia anterior. E agora cada argumento parecia ainda mais
absurdo. “Como você pode pensar de forma tão primitiva assim, TB?”, chegou a
perguntar, já demonstrando muita irritação com o amigo. Mas se acalmou e
continuou apresentando as refutações e explicações para cada ponto levantado
por TB. Sentiu que venceu o debate. Ficou feliz. TB não conseguia mais fazer
nenhuma contraposição relevante. Então TB foi se apagando, até ir embora de
vez.
Não passou um minuto e JS bateu à
porta. Chegou discretamente. Começaram a conversar. O diálogo durou pouco
tempo. Foi uma conversa amena. Não houve disputa de ideias e de argumentos.
Então, sem contenda, JS logo se apagou do pensamento dele. Foi embora.
Ele se viu na companhia dos seus
eus novamente. Aí convocou um deles a um novo diálogo.
“Uma prova de que os outros que
moram na gente não são uma mera criação é o fato de uns serem mais queridos que
os outros, não é?”, disse ele.
“Realmente uns são mais queridos
que outros, mas isso não prova nada. Por exemplo, a gente tem vários eus e uns
são mais queridos que outros. Os eus da infância são mais afáveis que os da
vida adulta. Eles são os que geram maior afeição na gente. Alguns eus da vida
adulta chegam até gerar antipatia na gente. Existe, portanto, uma variação de
afeto em relação aos eus do mesmo jeito que existe uma variação de afeto em relação
aos outros. Repito: a variação no afeto na prova nada”, disse um dos eus.
“Tá certo. Esse argumento é ruim
mesmo. De todo modo não é disso que eu queria falar”, disse ele, com certo
desdém.
“E é sobre o que é?”, insistiu o
eu.
“Sabe? muitas pessoas moram
dentro da gente de forma calma, serena. Eles não fazem baderna; não perturbam o
pensamento. JS é uma dessas pessoas. Mora aqui há bastante tempo e nunca fez
confusão. Nunca me fez ficar remoendo, com raiva, suas ideais. Já outras
pessoas só trazem perturbação, do dia que entram até o dia que a gente morre.
Que coisa!”
“É verdade! Mas sem a perturbação
dos outros, o pensamento se tornaria preguiçoso. Aposto que nem se esforçaria
pra fazer mais nada. Ficaria inerte a até ser tomado pela morte”, ponderou o eu.
“A vida é assim mesmo, né? cheia
de contradição. Os outros infernizam, mas são absolutamente necessários. Desejo
que eles tenham vida longa dentro da gente! Matar os outros é também matar a
gente”, disse ele encerrando a conversa.
Depois desse período de
recolhimento em si, ele foi pra cozinha conversar com a filha. Ela tinha
acabado de chamar ele para o lanche da tarde.
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