Estou escrevendo um texto sobre a
crise política que se abateu sobre nós desde as “jornadas de 2013”. De lá para
cá, entramos num turbilhão político (e econômico) medonho, avassalador. Decidimos
nos lançar num buraco sem fim. Depois de nos lançarmos no buraco, decidimos que a “melhor
coisa” a fazer era aprofundar mais o buraco. Começamos a cavá-lo desvairadamente.
Nesse momento, parece não haver nenhuma perspectiva de que queremos, primeiramente,
parar de cavar e, depois, sair do buraco.
Hoje, 7 anos depois dessa decisão,
não há um brasileiro – exceto o 1% mais rico – que não esteja sofrendo algum
tipo de consequência desse turbilhão. Obviamente, quem mais está sofrendo é quem
já sofria muito: o brasileiro empobrecido.
Em 2013, o brasileiro estava
começando a ver no horizonte o fim da pobreza e da indignidade social. Mas de
repente o curso da história mudou. Demos uma guinada de 180 graus e passamos ir
na direção do passado, buscando, com todas as nossas forças políticas e institucionais,
restaurar a infâmia. Esse assunto será tratado, de forma mais detalhada, no texto que vou
publicar daqui a alguns dias.
Por ora, quero chamar a atenção
para um outro detalhe importante da nossa tragédia pós “jornadas de 2013”.
Trata-se do ativismo político do judiciário. Esse é um tema complexo que
demanda uma grande discussão. Não temos espaço suficiente para discutir aqui todos
os aspectos da questão. Por isso, vou mencionar apenas um tipo de ativismo
político que tem se tornado recorrente na política brasileira recente: a intervenção
do STF em nomeações do Governo Federal.
Em entrevista à CNN hoje (29/04)
pela manhã, o ex-ministro do STF, Ayres Britto defendeu a interversão do STF em
nomeações do governo como um recurso que visa proteger a constituição. Ao discutir
a decisão do ministro Alexandre de Moraes, em suspender nomeação do diretor
geral da PF, Alexandre Ramagem, Ayres Britto, disse que a decisão do ministro
Alexandre de Moraes visou impedir que o executivo agisse de forma não republicana.
O ex-ministro Ayres Britto fez uma
retomada das decisões recentes que o STF tomou nessa direção. Cita os casos de
Lula, Cristiane Brasil, José Dirceu, Wellington César Lima e Silva. (Esses
casos estão detalhados no fim deste artigo, com as devidas fontes [1]).
Por fim, o ex-ministro justificou:
“Então, é uma linha de entendimento do Supremo que o habilita a sair, em última
análise, em defesa da Constituição [...]. Nós estamos chamando o feito à ordem
constitucional”
(https://bit.ly/2Ygvt6K).
Desde 2013, a sociedade brasileira
tem se entregado, de forma desastrada, a um clamor por esvaziamento da política.
Emergiu e se consolidou entre nós a ideia de que a política é o nosso grande
demônio. É ela que nos rouba tudo; é ela que nos faz ser atrasados; é ela que
impede a melhoria dos serviços públicos etc.
As manifestações de 2013 não tinham
como alvo, a princípio, nenhum político. Num primeiro momento, a indignação
social estava voltada para baixa qualidade dos serviços públicos, especialmente
o serviço de transporte urbano. Pouco a pouco a manifestação foi se tornando
pulverizada e logo passou a ter como alvo as instituições políticas, especialmente
o Congresso Nacional.
Havia um clamor popular por
reinvenção da política. E esse clamor se transformou em ataque severo à política.
Desde então, vimos crescer na sociedade uma negação da política como instrumento
de mediação da esfera pública.
A política foi derrotada. Não
demorou muito para que toda a indignação com o sistema político se voltasse
contra os políticos individualmente e contra espectros políticos específicos. Foi
esse o contexto que fez irromper, com força, o antipetismo, a antipolítica e a
oposição ferrenha ao Congresso Nacional.
Para entendermos a entrada do
judiciário no campo político, precisamos voltar a 2012. Ali estava
plantada a derrocada da política e ascensão do ativismo judiciário. Em 17 de
dezembro de 2012, depois de quatro meses e meio de intensa exposição midiática,
o STF concluiu o que ficou conhecido como "julgamento do mensalão" (
https://glo.bo/3aLxY3P).
Joaquim Barbosa, então presidente
do STF e relator da ação penal 470, se tornou herói nacional. Não havia, na
história da suprema corte brasileira, até aquele momento, um único julgamento que
tivesse sido televisionado e que tivesse transformado um dos ministros em
celebridade nacional. A história nos diz que quando um juiz vira um herói
é um sinal de que nossas instituições estão em crise.
Com a política sob forte ataque e
negação, a sociedade brasileira passou a depositar no judiciário toda sua
expectativa de mudança. O judiciário, estimulado pela grande mídia, aceitou o
papel de protagonista político. O STF se tornou, definitivamente, um ator combativo
no campo político.
Não bastasse a atuação do STF, tivemos,
em 2014, a entrada definitiva das outras instâncias da justiça no campo da
política. Em 17 de março de 2014 se iniciou uma operação de investigação que mudaria
por completo o rumo da política brasileira. A operação Lava-Jato foi uma grande
empreitada política protagonizada pela Polícia Federal (PF), Ministério Público
Federal (MPF), Justiça Federal do Paraná e Tribunal Regional Federal da 4ª Região
(TRF-4).
O lava-jatismo se tornou, então,
um poderoso partido político, tendo o juiz Sergio Moro como o grande líder. Esse
partido foi formado a partir de um consórcio de várias instituições e atores:
grande mídia, STF, setores políticos e partidários, movimento evangélico etc. Criou-se,
portanto, o caldo institucional que promoveria a escalada do caos político. As
eleições de 2014 sofreram, de alguma forma, o respingo desse caldo. Mas o pior
se estabeleceu a partir de 2015.
A história política recente é
bastante conhecida. Dessa forma, não há necessidade de relembrarmos detalhadamente
os fatos políticos de 2015 a 2020. Vou apenas enumerar alguns deles:
2015: contestação dos resultados
da eleição, aprofundamento da Lava-Jato, eleição de Eduardo Cunha para
presidência da Câmara, crise econômica;
2016: impeachment de Dilma, crise
econômica;
2017: caso JBS, denúncias contra
Temer, crise econômica;
2018: crise econômica, eleições baseadas
na antipolítica e antissistema, vitória de Bolsonaro;
2019: crise política persistente,
crise econômica persistente, crise da imprensa e fake News, ameaças constantes às
instituições democráticas;
2020: crise política persistente,
crise econômica persistente, crise da imprensa e fake News, ameaças constantes às
instituições democráticas, COVID-19.
Junto com o lava-jatismo, emergiu
o movimento político da antipolítica. Parece contraditório, mas foi isso mesmo que aconteceu . Surgiu dentro da própria política um movimento oportunista de
negação da política, amplamente alinhado com o lava-jatismo. Esse movimento era,
a princípio, bastante diverso em termos de liderança. Como se tratava de uma
grande oportunidade política, diversos políticos logo se aliaram à antipolítica
como tábua de salvação da própria pele.
Jair Bolsonaro foi o político que
melhor se adaptou ao movimento da antipolítica, tornando-se em 2018 seu grande
líder. Sua plataforma política se estabeleceu, portanto, em duas bases
elementares e vazias: ativismo político do judiciário (lava-jatismo) e
movimento antissistema (antipolítica). Foi a partir dessas duas bases
que ele, mesmo sem ter um plano de governo e sem participar efetivamente do processo
eleitoral, induziu 57 milhões de brasileiros a acreditar que o ativismo
judiciário e a antipolítica seriam o caminho para a solução da crise que temos
enfrentado desde 2013. O que se viu depois do início do
governo Bolsonaro foi só o agravamento das crises política e econômica.
É a partir desse contexto que devemos entender o recente ativismo do judiciário. É esse amplo pano de fundo que explica mais uma intervenção do STF em atos do Governo Federal.
Para finalizar, é importante dizer
que os próprios políticos são os principais responsáveis pela derrocada da
política e pela ascensão do ativismo do judiciário. Foram os próprios políticos
que se recusaram a promover as reformas políticas que a população tanto pedia.
Foram os próprios políticos que se recusaram a reorientar o curso de nossa
política. Foram os próprios políticos que alimentaram a autofagia, ao canalizarem
a indignação pública a um campo político específico (petismo), na esperança de
que os outros campos políticos seriam poupados.
Agora, o que resta à política,
como saída necessária e urgente, é a realização de uma grande aliança política,
em torno de princípios democráticos, com vistas à restauração e reinvenção da
política. Sem a política, não há salvação para nossa democracia. Sem a
política, jamais sairemos da crise política e da crise econômica. O judiciário não
pode salvar a política. Essa não é a sua vocação constitucional.
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[1] Intervenções do STF em atos do Governo
Federal
Confirmação do processo de
cassação do mantado do deputado José Dirceu, mesmo o deputado estando licenciado
da função
Proibição de Wellington César
Lima e Silva exercer a função de ministro da Justiça, sendo membro do Ministério
Público
Suspensão da nomeação de Luiz
Inácio Lula da Silva como ministro da Casa Civil
Suspensão da posse de Cristiane
Brasil como ministra do Trabalho