A linguagem
constitui os sujeitos; os sujeitos constituem a linguagem.
Esse
processo de mútua constituição se desenrola numa relação de vai e vem sem fim.
Os estudiosos caracterizam esse movimento constitutivo da linguagem e dos
sujeitos como uma “relação dialética”, reconhecendo que essas duas ações são
interdependentes, intrincadas e ininterruptas.
Assim, a ordem
das ações (linguagem constitui sujeito – sujeito constitui linguagem) é meramente
um detalhe, uma exigência da linearidade da língua. Nunca podemos demarcar isoladamente
uma dessas ações num dado momento, evento, cenário, prática ou estrutura
social.
Embora seja
um lugar comum para quem estuda a área, o reconhecimento de que tudo se faz
pela linguagem não é algo facilmente perceptível. Em nossa vida cotidiana,
tendemos a acreditar que as coisas simplesmente existem, independentemente da
linguagem. Tendemos achar que as relações sociais são construídas de forma
natural, como resultado de uma sequência de fatos eternamente repetidos, fatos que
sempre existiram e que sempre existirão. Não é por acaso que qualquer mudança
social que instabilize algumas práticas cause tanto estranhamento e revolta em
certos grupos sociais, especialmente os grupos privilegiados.
Dada a
naturalidade com que usamos a linguagem cotidianamente, tendemos a achar que ela
simplesmente nomeia e representa coisas, de forma direta, transparente e, em
alguns poucos casos, de forma precária.
Em geral, as
pessoas não questionam o fato de “deus” ser uma palavra masculina e “divindade”
ser uma palavra feminina. Conduzidos pela história, simplesmente usamos essas
palavras. Pouco importa se a entidade que chamamos de “deus” tenha gênero ou
não; ou se essa entidade, tendo gênero, seja do masculino ou feminino. Simplesmente,
seguimos o fluxo histórico. Se no processo sociocultural, dentro do qual fomos constituídos
como sujeitos, uma entidade sem gênero é nomeada com uma palavra no masculino (“deus”),
simplesmente repetimos o processo sem qualquer questionamento. Tendemos achar
que a linguagem, nesse caso, não faz mais do que representar tal objeto.
Uma pessoa
que não reconhece o papel constitutivo da linguagem poderia levantar o seguinte
argumento:
“Ora, a linguagem
não constrói o objeto ‘DEUS’; ela simplesmente o representa. Se na língua portuguesa
não há nomes sem gênero, não resta outra saída aos falantes senão usar uma
palavra masculina ou feminina. O fato de a entidade ‘DEUS’ ter sido representada
numa palavra masculina foi um mero acaso. Poderia ter sido, igualmente, representada
numa palavra feminina. Foi só uma questão de loteria da língua, por conta de
uma leve precariedade”.
Contudo, o
fato é que, do ponto de vista das ciências da linguagem, o uso de uma palavra masculina
para nomear a divindade judaico-cristã não é um mero acidente. O gênero
gramatical das palavras que usamos no dia a dia não é, em grande parte, uma
mera loteria linguística. Resulta de um processo de constituição social complexo,
em que a linguagem assume um papel importante na hierarquização dos gêneros, dando
ampla vantagem e dominação ao gênero masculino.
O fato de usarmos
a palavra “denegrir” como sinônimo de “difamar” também não é um mero acaso
linguístico. Existe uma construção social racista que dá suporte a esse uso.
A língua constrói
todo um sistema complexo de hierarquização dos gêneros, das raças, das classes sociais
etc. O grande desafio da educação linguística escolar é mostrar que tudo que se
faz em uma sociedade se faz na e pela linguagem. Não existe uma sociedade racista
que não aloje esse racismo na linguagem. Não existe uma sociedade sexista,
machista e patriarcal que não aloje esses comportamentos na linguagem.
Portanto, é
na linguagem que devemos buscar e corrigir as bases do que somos. É na ressignificação
e reconstrução da linguagem que podemos construir uma nova sociedade. Não há
possibilidade de avanço humanístico e civilizatório para a sociedade que despreza
o ensino-aprendizagem da linguagem.