Como você se sente em relação ao mundo que recebeu da sua família, especialmente o mundo religioso? Você quer ou não dar continuidade a esse mundo?
Essas perguntas tocam em um dos
aspectos centrais de nossa identidade. O que somos resulta, em grande parte, de
uma herança familiar. Aquilo que cada um de nós concebe como “eu” é, em grande
medida, uma concessão identitária da família.
Viver de acordo com mundo
herdado da família, em geral, nos garante um
ambiente de paz identitária; nos permite experimentar um forte sentimento de pertença, de
igualdade.
Contudo, quando decidimos romper com o mundo oferecido pela família, passamos a viver numa espécie de exílio identitário,
mesmo estando entre as pessoas que amamos e que nos amam. Num cenário mais complicado,
passamos a enfrentar fortes conflitos internos e externos.
Em sociedades fortemente influenciadas pela religião como a nossa, é comum crescermos em famílias
religiosas. Desde pequenos, somos expostos a um conjunto de ideologias de uma
certa religião. Herdamos concepções, crenças, valores, ritos e comportamentos.
Esse conjunto de coisas define a
verdade sobre tudo que envolve a nossa vida: mundo, terra, vida, animais, ser
humano, corpo, etnia, passado, futuro, verdade, desejo, retidão, caráter
etc.
A transmissão familiar é feita de
forma tão naturalizada que esse pacote de verdades jamais é concebido como uma
criação social situada. É visto como algo que existe desde sempre, que é
compartilhado por todo mundo. Jamais é visto como um pacote que existe ao lado
e em competição com outros pacotes religiosos.
Quem se dispõem a ir além da herança
familiar e construir um percurso espiritual próprio logo descobre que todo
pacote religioso é carregado de problemas. Diante dessa constatação, a única
saída é começar a se desfazer das parafernálias e tranqueiras herdadas.
Essa ruptura nunca é emocionalmente
pacífica. Abrir mão de um mundo herdado é sempre doloroso. Não há como abrir
mão de uma herança identitária sem abrir mão de pessoas. Toda vez que
abandonamos os deuses de nossos pais, acabamos também abandonando, em certo sentido,
os nossos próprios pais. As pessoas sempre incorporam as divindades que seguem.
Assim, ao recusar um valor religioso
familiar importante, acabamos recusando também, em parte, um pedaço das pessoas
que amamos. Por isso, construir por conta própria uma composição identitária é
sempre uma tarefa melancólica, desafiadora; é recusar o que somos para ser
outra pessoa.
Só quem realmente quer construir a própria
a espiritualidade é capaz de peregrinar no mundo, buscar novos deuses, buscar
novos valores, buscar uma nova fé. Só quem consegue conviver com a angústia da
liberdade e da autonomia é capaz de dizer para si mesmo: quero outra identidade
para viver. A opção mais fácil é sempre ficar em casa, no aconchego do que é
conhecido, do que é partilhado, do que é igual.
Que libertador.
ResponderExcluirMuitas vezes, ao questionarmos os deuses de nossos pais e avós somos vistos como herege e sempre ouvimos que a mão de Deus pesa sobre nós quando enfrentamos qualquer problema comum à vida.
E sim, convivo com essa angústia da liberdade há muito, muito tempo.