As religiões monoteístas tradicionais (entre elas, o cristianismo,
obviamente), com suas reivindicações de exclusividade, parecem não mais se
ajustar aos ideais de uma comunidade humana global, cada vez mais diversa,
plural e coexistente. A ideia de um Deus único, administrado por uma
instituição, parece não mais caber no nosso mundo.
Uma divindade que reivindica lealdade absoluta de seus
seguidores e o engajamento na conversão de todos os outros humanos (custe o que
custar) é, na melhor das interpretações, uma ideia anacrônica que precisa ser
debatida cada vez mais. Na pior das interpretações, é uma ideia extremista que
precisa ser responsavelmente combatida, pelo fato de perpetuar, na comunidade
humana, o caos da intolerância, fazendo surgir inúmeras vítimas em todo mundo.
Em cada momento histórico, os humanos são desafiados a
construir novas condições de existência, com vistas a garantir a
continuidade da vida e da história humana. Como seres
humanos, temos a responsabilidade de pensar no universo como a nossa casa e na história como nosso destino.
Nesse sentido, em cada geração, somos instados a refletir sobre
três questões fundamentais:
(a) Que casa (universo) haverá para quem virá
depois de nós?
(b) Que conceito de humano estamos lançando como base para quem
virá depois de nós?
(c) Em que medida estamos fracassando ou avançando em nossa
responsabilidade de garantir condições para a continuidade da vida e do humano?
Todas as instituições humanas se constituem, de alguma
forma, em agências de transmissão-transformação-produção de saberes. E, por
isso mesmo, são todas responsáveis por produzir essas reflexões no interior de
suas bases, de suas epistemologias e de suas práticas. Obviamente, as instituições
especializadas em transmitir-transformar-produzir saberes (a escola e a
universidade, por excelência) têm um papel mais acentuado nessa tarefa. Mas
isso não quer dizer que as outras instituições estão isentas dessa responsabilidade.
Reflexões sobre a história e sobre o destino do humano devem
estar nas bases dos saberes da religião, da família, da política etc. Se
fizermos pouco caso dessa reflexão, certamente estaremos nos expondo ao risco do
fracasso, da extinção. Sem reflexão não há futuro para o humano.
Em geral, todas as instituições se dizem preocupadas com o
humano. Porém, essa preocupação só existe na prática se a questão humana mais
fundamental, a vida-morte, for realmente pensada nos termos da dignidade
humana. Nenhuma religião que interprete a vida-morte a partir de ideias-valores
metafísicos externos ao humano, distante do sofrimento concreto de cada dia, estará
cumprindo bem o seu papel.
Para cumprir bem esse papel, é necessária a afirmação da dignidade
humana a partir de si mesma. Isso significa dizer que, para realmente contribuir
com o destino humano, as instituições religiosas devem colocar o humano como o
valor supremo, mesmo que isso custe abrir mão de algum dogma. Por exemplo, não
se pode mais admitir um dogma que atribui a uma divindade a prerrogativa de deliberar
arbitrariamente a vida-morte de um ser. Uma divindade, cuja ética independe de valores
humanos supremos (direito à vida, por exemplo), não pode continuar sendo uma divindade.
Como dito, todas as religiões têm a responsabilidade de
produzir uma reflexão sobre o humano. Contudo, como estamos imersos numa
sociedade de base judaico-cristã, cumpre começarmos essa reflexão a partir dos
nossos próprios domínios. Entre os cristãos, é muito comum o pensamento de que
a intolerância religiosa é um problema de outras religiões. Sabemos que não é
assim. O cristianismo, em sua base teológica tradicional, é exclusivista e
conversionista; portanto, é tão intolerante quanto outras religiões monoteístas.
Impõe-se ao cristianismo a necessidade de refletir sobre suas bases teológicas e construir novos modos de ver a divindade, caso queira
seguir em frente. Do contrário, se colocará na contramão da história humana,
sendo, em breve, superado. Continuar afirmando certos dogmas, à revelia das
condições históricas em que vivemos, é, no mínimo, um erro estratégico, em
termos de busca pela sobrevivência.
É verdade que vivemos atualmente uma forte onda de reacionarismo.
Estamos vendo uma intensa exposição de algumas visões de mundo que já pareciam
superadas. Imaginávamos que a humanidade já tinha alcançado uma nova fase
civilizatória, em termos, por exemplo, de algumas questões raciais e de gênero.
Entretanto, como sabemos, a história se transforma em saltos,
tendo um ponto de intersecção bastante tenso entre uma fase e outra. É esperado
que as reações venham à tona nesses momentos de transição. Mas uma reação
jamais tem o poder de se estabelecer como paradigma. Aliás, a reação existe exatamente
porque o paradigma está mudando. A reação é apenas o capítulo final de uma
fase, o ponto de transição para uma mudança definitiva.
Portanto, cabe ao cristianismo fazer uma grande reflexão
sobre sua concepção de divindade, entre outros dogmas. Se
quiser dar o salto da mudança e seguir junto com a história, terá que certamente renunciar
certos dogmas e certas práticas.