Hoje perdemos Ferreira Gullar.
Ele era o nosso último grande poeta vivo. Para mim, Carlos
Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Ferreira Gullar e João Cabral de Melo
Neto são, nesta ordem, os maiores poetas brasileiros.
Há, entre os poemas de Gullar, um que me toca mais
profundamente. É “O Duplo”.
O DUPLO
Foi-se formando
a meu lado
um outro
que é mais Gullar do que eu
que se apossou do que vi
do que fiz
do que era meu
e pelo país
flutua
livre da morte
e do morto
pelas ruas da cidade
vejo-o passar
com meu rosto
mas sem o peso
do corpo
que sou eu
culpado e pouco
[Ferreira Gullar. Em alguma parte alguma. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010. p. 38]
Esse poema desnuda a relação tensa do Eu com a memória, com a história e com o corpo. O Eu se mantém, mas não pode se manter
idêntico a si mesmo. Há que se dividir.
A história, a memória e o corpo, inevitavelmente, clivam e multiplicam
o Eu. Em desespero, o Eu se põe a buscar no corpo fragmentos remanescentes de
si, que lhe garantam a autenticidade e a unidade. Aos poucos, o Eu percebe, em
profunda angústia, que até mesmo o corpo de lhe trai. Outros Eus continuam
nascendo da carne.
Em “O duplo”, vemos o Eu Gullar espreitando, de forma enciumada
e ressentida, seu duplo que segue livremente a vida que a história lhe concede.
Hoje o Gullar que espreita se foi. Mas não ficamos sem ninguém.
Livre da morte e da vigilância, o outro Gullar se apresenta
a nós sem reservas. Nos dedica, em poemas, uma vida e uma memória imortal. Suas
palavras nos oferecem, indistintamente, a companhia arrebatadora de Gullar e de
seu duplo.
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