Toda pessoa vive em função de determinadas causas, agendas, fins, objetivos. Constrói sua identidade em torno disso.
Nossa vida social,
política e cultural se desenvolve num mundo ambíguo. Por um lado, nos deparamos
com um mundo familiar, um cenário aprazível de viver. Por outro, damos de cara
com um mundo igualmente medonho, feio, estarrecedor, contra o qual nos sentimos
impelidos a lutar.
Vivemos nossa
experiência sociocultural e política numa espécie de fronteira, num ponto de
interseção entre a acomodação e a inadequação. Nos sentimos em casa, acomodados
em um grupo social organizado, do qual extraímos parte de nossa identidade. Mas,
de forma dramática, sentimos também pertencer a um grupo que nos assusta, que
nos causa repugnância.
É dessa experiência
de estranhamento e horror que deriva a maior parte das nossas causas de vida,
questões pelas quais estamos dispostos a lutar (morrer não!). Recorrentemente entramos
em contanto com um mundo horroroso que precisa mudar. Sentimos que esse mundo está muito
distante de nosso ideal de sociedade. Daí elegemos as trincheiras em que
atuaremos.
Noutra época,
as pessoas empenhavam até a vida pelas suas causas. Com o fim das utopias, a
coisa ficou mais branda. Atualmente, a maior parte de nós faz apenas militância
digital nas redes sociais. E, no máximo, colocamos amizades em risco.
Bom, mas o fato
é que, mesmo com a morte das utopias, as pessoas continuam elegendo causas pelas
quais devem lutar. Isso é parte indispensável de nossa vida política; parte indispensável
da constituição de nossa identidade social e pessoal.
Diz a sabedoria
popular que as causas definem as pessoas. E é verdade. As causas pelas quais
lutamos é parte fundamental de nossa identidade. Somos quem somos porque nos
identificamos com um ideal de mundo e lutamos por isso. Cada pessoa, em função
de sua narrativa de vida, tem certas indignações com o mundo. Tem certas
esperanças, utopias e desejos.
Obviamente, as
causas são diversificadas. Lutamos por algumas coisas, não por todas. Só uma
parte do horror do mundo nos causa tamanha revolta a ponto de arrancar de nós
um post, um textão. E essa seleção de causas acontece por uma razão bem simples:
as histórias de vida e as identidades pessoais são diversificadas; nos construímos
na tensão entre a igualdade e a diferença.
Por isso é
muito mais importante buscar a base de nossa identidade nas causas que nos
atraem do que nas outras causas. Devemos ser identificados sobretudo
com o mundo que estamos lutando para construir.
É verdade que há
muitos mundos que precisam ser construídos. Mas, por uma questão de trajetória
de vida, escolhemos um desses mundos para fazer parte da nossa agenda social e
política.
Penso ser
importante ressaltar uma vez mais: a identidade de cada pessoa está associada à
percepção de apenas uma faceta do horror do mundo. Nenhuma pessoa tem condições
de desenvolver uma percepção plena de todo horror que circunda a vida humana; muito
menos ainda de se engajar em todas as lutas sociais.
Em tempos de
muita militância digital e acusações constantes, precisamos aprender a conviver
com a diversidade de causas, de lutas, de agendas. O fato de alguém se envolver
numa determinada causa não quer dizer que outras causas sejam banais. Não,
absolutamente não! Quer dizer apenas que para essa pessoa a causa pela qual
luta é a sua causa.
Vivemos tempos
de intolerância generalizada, incluindo a intolerância com as causas uns dos outros.
Chegamos ao ponto extremo de ver duas pessoas que lutam por causas igualmente
justas e relevantes considerarem uma à outra apática, alienada, conformada.
Isso pela simples razão de não compartilharem a mesma luta.
Vivemos no
planeta da barbárie. É bom que as causas sejam diversificadas. Assim há
possibilidade de atacarmos a barbárie em várias frentes. Várias são as causas
pelas quais lutar: direitos da mulher, direitos de refugiados, direitos do
pobre, direitos do negro, direitos da criança, direitos à diversidade sexual, direito
à liberdade, direito à diversidade religiosa, fim da cultura do estupro, fim do
trabalho escravo, fim da colonização, etc. etc.
Repito: nenhuma
pessoa aglutina todas as causas.
Quando aceitamos que as nossas lutas não são
as únicas lutas, criamos maiores oportunidades de cooperação. Ao complementar as
lutas uns dos outros aceleramos a construção de um mundo melhor.
Para mim não
faz o menor sentido a seguinte acusação: “Fica completamente indignado contra a
violência da polícia. Quero ver a mesma indignação contra o trabalho escravo”.
Não podemos
cair na intolerância das causas. Um grupo luta contra a violência da polícia.
Outro grupo luta contra o trabalho escravo. Ambos os grupos se complementam na luta
pela construção de um mundo melhor.
A exigência de
que alguém se envolva com a mesma intensidade em todas as causas humanas é
absurda e intolerante. O importante é que cada um se engaje em pelo menos uma
luta social, que haja pelo menos uma parte do horror do mundo nos tire da inércia.
Devemos estar abertos
à indignação. Devemos nos perguntar constantemente: “Que parte do horror do
mundo me causa horror?” Cada um encontrará sua própria reposta. Não temos o
direito de pautar a vida e as lutas uns dos outros. Devemos aprender a conviver
com o fato de que as causas que fazem parte da nossa agenda não são as mesmas que
fazem parte da agenda do outro.
Parabéns pelo texto professor Sostene Cezar, foi um prazer lê-lo...
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