Sou um amedrontado pela página em branco, uma superfície
sempre arriscada.
Heleno Godoy [1]
Existem razões para escrever? Não sei. Só sei que escrever é
um mistério e uma fonte-foz de angústia.
Quando falo de escrever, obviamente não estou falando de
escrever um artigo acadêmico, um relatório técnico ou qualquer coisa ligada ao
mundo do trabalho e das obrigações. Estou falando da escrita que não se
paga, que não tem função explícita, que não é encomendada. Existe uma escrita
que é economicamente desnecessária e desprovida de pretensão-função educativa.
É dessa que estou falando.
Penso que algumas pessoas escrevem simplesmente porque estão
programadas pra escrever. Existe nelas uma base artística que controla os fluxos
da escrita.
Ainda não dispomos de conhecimento suficiente para discernir-descrever
a natureza desse sistema. Também não sabemos quem (ou o que) o engastou na alma da pessoa e
por que razão fez isso. O fato é que há, em algumas pessoas, uma disposição perfeita,
indomável e inadiável pra escrever.
Nessas pessoas, quando os gatilhos e comandos do texto são
disparados, não há outra coisa a fazer senão escrever. Não se pode negar um
texto a uma alma que é dotada de criação literária. Quando as palavras acordam,
uma tremenda balbúrdia se instala na alma; só uma tela em branco clamando por
um texto pode salvá-la.
Há outras pessoas que escrevem porque sentem a necessidade
de escrever. Essas pessoas não são programadas pra escrever. O texto não
irrompe, não está pronto. Na verdade, pede para ser construído. E, como ele não
é fruto de ação espontânea, precisa ser pensado, mexido, acariciado, namorado e,
sangrentamente, elaborado.
Quando não se tem uma base interna que empurra o texto para
fora a qualquer custo, o esforço para gerá-lo é sempre absurdo e cruel.
Sentir necessidade de escrever é diferente de, simplesmente, se pôr a escrever,
de ser captado por um texto que já está pronto na alma.
A necessidade da escrita torna consciente o seguinte problema:
existe um texto reivindicando ser escrito, mas não há matéria e ação espontânea
para isso. Na verdade, não é bem um texto que pede para ser escrito; é um monte
de palavras que pedem para vazar. Cabe à pessoa a tarefa atroz de ordená-las,
textualizá-las.
A diferença entre ser captado pelo texto e sentir
necessidade de escrever pode ser descrita mais ou mesmos assim. Quem escreve
porque está programado pra escrever não precisa elaborar o texto; precisa
apenas pari-lo, pôr para fora. Ele já está gerado nas entranhas. Quem escreve
porque sente necessidade escrever precisa dolorosamente fabricar o texto; precisa
travar uma luta com um bando de palavras insurgentes e xucras. É preciso desembaralhá-las,
domesticá-las. Escrever é, nesse caso, fazer o pensamento sangrar; é fazer o
espírito criar algo para o qual ele não está equipado.
Quem escreve por necessidade
contraria o destino,
ensaia e encarna uma dissidência,
se embrenha numa revolta contra uma ausência inexplicável.
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[1] Godoy, Heleno. Leituras
de ficção e outras leituras. Goiânia: Ed. PUC-GO/Kelps, 2011. p. 75.
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