por Josimar A. de Alcântara Mendes**
No ano de 1987, regido pelo signo de Peixes, eu vim a este
mundo durante as águas de março. Filho de uma mãe que fugiu da família
opressora e violenta do interior de Minas, eu nasci como o caçula de uma
família que se reorganizava após um divórcio.
No ano em que nasci, o nosso país estava em um franco
processo de redemocratização, após anos de Ditadura Militar. Os livros de
História contam que a esperança voltava aos corações de nossos pais, mães e
avós.
Aí veio Tancredo, depois Sarney e em seguida Collor. A
esperança minguava de novo nos corações. Depois veio o Itamar e o Plano Real, o
qual levou o Sr. Fernando Henrique Cardoso à Presidência do nosso país.
Nos idos de 1994, eu tinha apenas os meus tenros 7 anos de
idade. Não sabia o que era inflação e nunca pude imaginar e/ou dimensionar os
sacrifícios que uma mãe solteira com três filhos tinha que fazer para sustentar
a sua família com a tal inflação chegando aos 900% ao ano.
Mas eu sempre soube o que era pobreza. Fui pobre, sim. E por
mais piegas que possa ser, devo dizer que era "pobre no bolso, mas rico no
coração e na alma". E era isso que, naquela época, me fazia olhar para a
pobreza com um olhar ingênuo e até encantado.
Minha mãe sempre trabalhou muito como diarista, fazendo o
imenso, doloroso, mas necessário, sacrifício que todas as diaristas têm que
fazer: deixar de cuidar da própria casa e dos próprios filhos para cuidar da
casa e dos filhos dos outros. Outro sacrifício que fazia era rebolar para pagar
o aluguel e, ao mesmo tempo, alimentar os três filhos. Tarefa difícil naquela
época. Sem escolha - como quase nenhum pobre tinha naquela época -, minha mãe
decidiu mudar-se de Sobradinho, cidade satélite a uns 20km da capital do país,
Brasília. Nós iríamos para o recém-implantando "assentamento" que
havia sido feito por um governador populista da época. Mudamos para Sobradinho
II - na época apelidada de Agreste, não apenas em alusão à famosa novela da
época, mas também um retrato fiel das condições que a cidade apresentava - ou
melhor, não apresentava: não tinha esgoto, não tinha água, não tinha luz, não
tinha asfalto, não tinha acesso à educação... não tinha nada (parece até a
prima pobre daquela "casa muito engraçada" das cantigas infantis).
Em um ato, o qual eu só posso classificar como de coragem e
força (o que os pobres precisavam ter e muito naquela época), minha mãe alugou
um caminhão de mudança, colocou todos os poucos pertences que tinha e os três
filhos pequenos dentro. Lembro de ir com ela em seu colo. A percepção pueril do
mundo fazia-me ver aquilo como uma excitante aventura - e devo dizer que a
pobreza foi assim para mim durante grande parte da minha infância.
O caminhão ia desbravando o assentamento. Minha mãe estava
determinada a achar o melhor lugar para ficarmos. Em uma dada rua, mais
precisamente no fim dessa rua, em um terreno baldio, minha mãe deu a ordem com
firmeza: é aqui! O caminhão parou, descarregou as coisas no barro e poeira
vermelha. Não me lembro muito bem, mas minha mãe já havia acertado com alguns
conhecidos para ajudá-la a construir o barraco de madeira que, a partir dali,
chamaríamos de lar – os governantes chamariam de invasão de terreno público.
Enquanto ela arregimentava a mão de obra e as folhas de madeirite, eu me
entretia com o chafariz, única fonte de água para as pessoas que moravam ali –
depois entendi que aquele local escolhido, não era por acaso; minha havia
escolhido ele sabiamente, pois, assim, teríamos acesso rápido e fácil à água. O
fim do dia chegou e com ele a nossa nova casa. Era um barraco com
aproximadamente 20 metros quadrados com o chão de terra vermelha batida e ainda
sem banheiro. Ali havia uma cama (a qual eu e minha mãe dividíamos) um beliche,
onde os meus dois irmãos mais velhos ficavam, um guarda-roupa velho e um fogão
meio surrado. Não tínhamos TV, nem geladeira e nem adiantaria, pois não havia
energia.
Tenho muitas lembranças daquela época. Lembro da conivência
difícil com as formigas saúvas, moradoras originais daquele terreno que
insistiam em dividir o barraco conosco – todo domingo, a minha mãe fazia a
feira e na lista sempre tinha o veneno para matar as saúvas, mas elas
resistiram bravamente até o dia em que foi feito um piso de cimento queimado lá
em casa. Lembro dos banhos de caneca e bacia; do dia em que foram cavar a fossa
lá de casa e como eu me divertir com todo aquele barro vermelho, entrando e
saindo do buraco; lembro dos banhos de chafariz no final de tarde de céu
amarelado, antes de minha mãe chegar do trabalho – quando o sol de punha, era quando
ela chegava; lembro da brincadeira de rua com os colegas de infância... lembro
de tudo isso com uma memória viva de alegria e encanto diante da vida, mesmo
cercado pela violência que a pobreza e insalubridade podem gerar, pelas drogas
e violência estatal (ora instrumentalizada pela própria polícia – lembro-me de,
pelo menos, três episódios de violência e abuso policial que presenciei quando
criança; ora pelos agentes da TERRACAP que, mais de uma vez, vieram para
derrubar o nosso barraco, mas nunca o fizeram, graças a Deus!).
Um belo dia, aprendi que ser pobre era ruim. Aprendi a ter
vergonha de ser quem eu era e, principalmente, de onde eu morava. Na primeira
série, o encanto pela pobreza já tinha acabado, agora eu só tinha a dureza de
perceber o quanto aquilo tudo era sofrido e o quanto eu tinha vergonha. Hoje
sinto que, naquela época, os pobres tinham que ser não somente pobres e ficarem
à própria sorte, mas também a ter vergonha disso. A vergonha era sustentada,
legitimada e reforçada nos mais diversos espaços sociais, inclusive na escola.
Em um dia de chuva, o pai de uma colega da escola se
ofereceu para me levar de carro até em casa. Aceitei o convite, mas chegando na
minha rua, senti uma angústia, uma ansiedade, um incômodo. Era a vergonha me
lembrando que eu era pobre e do quanto que eu não queria que eles vissem o
barraco aonde eu morava. No meio da rua, aproveitando o lamaçal que se fazia
toda vez que chovia, eu pedi a ele: "pode parar aqui, não vai dar para
passar!" Daí ele perguntou: "mas aonde é a sua casa?" Pego de
surpresa, a única reação que eu pude ter foi apontar para uma casa que ficava
perto da minha. Feita de tijolos, com muro, portão e um pequeno sobrado. “É ali
que eu moro”, eu disse. Desde aquele dia, aquela passara a ser a minha casa
para os amigos da escola. Eu tinha vergonha de onde morava e de ser pobre.
Hoje eu me pergunto que país era aquele onde as pessoas além
de serem relegadas à pobreza e a própria sorte dos poucos recursos que tinham,
deviam ter vergonha de ser daquele jeito, de morar naquele lugar, de não ter
dinheiro e nem condições e se conformarem com isso. Hoje eu sei que essa é uma
das mais poderosas tecnologias de dominação e exercício de poder já criadas e
que Foucault nenhum botaria defeito!
Na escola não era diferente. Lembro de uma professora de
Matemática que, durante um dos seus constantes rompantes histéricos, disse a
todos da turma: “vocês são burros mesmo! Não têm jeito, aqui todo mundo vai ser
ou lavadeira ou caixa de supermercado”. Os alunos ressentiam calados,
resignados enquanto viam a vergonha de sua pobreza ser, mais uma vez,
legitimada e reforçada.
Não se pode negar que as políticas públicas da época não
tinham qualquer preocupação com essa situação. Reduzir as desigualdades
sociais, empoderando socioeconomicamente os menos favorecidos nunca fez
sentido, pois isso contrariava a própria lógica de dominação estabelecida.
A primeira vez que eu e minha família fomos beneficiados por
alguma política pública efetiva foi durante o mandato do ex-governador Cristovam
Buarque, na época integrante do Partido dos Trabalhadores – PT. Cristovam
implementou o programa Bolsa Escola – que foi um dos programas embrionários do
Bolsa Família. Com o primeiro benefício que recebemos, a minha mãe pôde comprar
uma geladeira lá para casa - a qual perdura até hoje! Antes disso, a comida
tinha que ser feita para o dia e os alimentos perecíveis eram guardados nas
casas dos vizinhos que tinham geladeira e se disponibilizavam a nos ajudar.
Pouco tempo antes, havia chegado água encanada e energia elétrica lá em casa.
Ainda consigo lembrar da minha excitação e alegria em tomar banho com chuveiro
quente. Mas a maior alegria estava por vir. Não tínhamos TV em casa e, a
exemplo da geladeira, a gente partilhava da TV que tinha na casa dos vizinhos.
Com o segundo benefício do Bolsa Escola, minha mãe comprou a TV. Eu não pude
acreditar! Ter uma TV em casa era algo quase mágico, poder assistir os meus
desenhos na minha própria casa, era um verdadeiro sentimento de dignidade.
Eu sempre gostei de estudar, mas a legitimidade que o
governo dava para aquilo, por meio daquele benefício social que tanto ajudava a
minha família, era um grande reforço para seguir no caminho dos estudos. Com o
incentivo do Bolsa Escola, eu segui firme nos estudos, terminando o Ensino
Fundamental. Quando entrei para o Ensino Médio, não havia mais nenhum benefício
social que me incentivasse, mas havia o benefício da mudança social que se
instalava no país com a eleição do ex-presidente Lula. Naquela época, eu já
sabia que as coisas já estavam mudando, mas que eu só poderia vencer por meio
dos estudos.
Assim que terminei o Ensino Médio, me vi meio sem rumo. Não
tinha perspectiva, pois apesar de querer entrar para a Universidade, sabia que
não seria fácil. Cheguei a cursar dois semestres de cursinho pré-vestibular com
bolsa de 80%, custeada por uma amiga professora da Universidade de Brasília –
UnB, já que a minha mãe não poderia pagar. Mas não consegui obter a aprovação,
devido à alta concorrência. Era como se eu estivesse vendo a materialização
perversa da profecia do mal que aquela professora de matemática havia feito
anos atrás. Mas o ano de 2005 começou com boas notícias e uma delas foi a de
que eu havia sido contemplado com uma bolsa integral no Programa Universidade
para Todos – ProUni para cursar Psicologia na Universidade Católica de
Brasília. Eu não consigo descrever a minha emoção e alegria quando recebi a
notícia. Naquele instante, naquele exato momento, eu começava a me despir de
vez da vergonha de ter o estigma de ser pobre.
Mas os movimentos instituídos de legitimação da vergonha
ainda se faziam presentes. Certa vez, eu estava conversando com uma amiga que
havia ingressado na UnB. Daí um homem da comunidade nos abordou, nos deu os
parabéns pela conquista da Universidade, mas aconselhou severamente a minha
amiga: “mas olha, não fala para eles lá que você é daqui, não viu? Eles vão te
descriminar!” Essa mesma realidade eu encontrei quando, junto com essa amiga,
montei um projeto voluntário, no qual eu voltava a minha antiga escola de
Ensino Médio e palestrava para os alunos sobre a importância de estudar e as
formas de ingressar na Universidade. O maior desafio era ajudá-los a perceber
que eles, apesar dos pesares, de também serem pobres e morar ali, tinham todo o
direito de querer entrar e poder entrar na Universidade.
Após cinco anos e meio de muitas dificuldades e com ajuda muita
de gente que acreditou em mim, finalmente eu consegui me formar como Bacharel
em Psicologia no primeiro semestre de 2011. Depois de formado, me vi, mais uma
vez, em uma situação difícil, precisava trabalhar, mas queria continuar a minha
formação. Em um ato de coragem, decidi me inscrever na seleção do mestrado da
UnB. Graças ao programa de reestruturação e ampliação das Universidades, o
REUNI, o qual ampliou o número de vagas, eu passei no processo seletivo e dei
início ao meu curso de mestrado. Mas ainda tinha um problema: como me manter no
mestrado e na própria vida sem dinheiro? Após um mês de mestrado, eu passei em
uma seleção para professor temporário do Instituto Federal de Brasília – IFB,
que estava se expandido pelo DF, graças ao fomento do Governo Federal. Um ano e
meio depois, também comecei a dar aula no PRONATEC, pelo IFB.
Eu sempre soube que seria professor, mas a experiência no
IFB não apenas consolidou essa certeza, como também a paixão por lecionar, algo
que quero continuar a fazer até quando o corpo e a mente me permitirem.
No ano de 2013, eu terminei o meu mestrado. Lá estava eu, o
filho pobre de uma diarista que estudou só até a quarta série; com irmãos que
sequer conseguiram terminar o Ensino Fundamental; que morou e ainda morava em
um barraco de madeira... concluindo um curso de pós-graduação. Eu nunca vou
esquecer do dia 18 de outubro de 2013, o dia da minha defesa de dissertação de
mestrado. Ao final, ao receber o título de Mestre em Psicologia, eu agradeci
com o coração e lágrimas a Deus e a todos os presentes – que, de alguma forma,
contribuíram para eu chegar até ali. Eu agradecia também como o cidadão de um
país, aonde existia um governo que acreditava em seus cidadãos, em especial os
menos desfavorecidos que, historicamente, sempre foram renegados e explorados
em nosso país.
Hoje eu trabalho em um dos Ministérios da Esplanada aqui em
Brasília e sou Professor de uma Instituição de Ensino Superior. Com os meus
dois empregos, eu pude comprar o meu carro e estou tirando carteira. Mas o mais
importante, depois de 20 anos, eu pude livrar a mim e a minha mãe da última das
vergonhas que os processos históricos de discriminação, segregação e
desigualdades sociais de nosso país nos impuseram: daqui a um mês e pouco
estará pronta a casa da minha mãe, feita com tijolos, rebocada, com todos os
acabamentos a que tem direito, com muro e um portão. É muito importante para
mim poder dar a minha mãe, ainda em vida, o mínimo de dignidade que todo ser
humano deveria ter: uma casa decente para morar.
Não há como negar que todas essas minhas conquistas, a
despeito de fatores pessoais, subjetivos, de contexto e resiliência, só puderam
existir graças à mudança socioeconômica que o nosso país vem passando desde
2002. Seguramente, posso dizer que jamais poderia ter chegado até aqui sem
essas mudanças. Diminuir as desigualdades é a chave para o crescimento de
qualquer país, não só o econômico, mas também, e principalmente, o social.
É notório que o Governo do PT tem os seus calcanhares de
Aquiles, como todos os governos anteriores e o que vierem terão. O problema do
nosso país são os processos históricos de desigualdades e segregação que
fundamentam os valores, culturas e costumes de nosso país e perpetuam
perversamente a violência, a discriminação, a corrupção e tantas outras mazelas
sociais. A melhor forma de se combater isso é justamente atuar sobre esses
processos, desconstruindo eles, ainda que aos poucos. E é isso que o Governo do
PT vem fazendo e precisa continuar fazendo com a presidenta Dilma!
O senhor Aécio Neves dissimula boas intenções, mas não pode
negar os interesses por trás das ações que o PSDB defende e sempre defendeu. A
prova disso é o argumento do Fernando Henrique Cardoso ao dizer que os mais
pobres votam na Dilma por serem menos qualificados. Tal discurso escancara sem
nenhum temor ou pudor a intenção do PSDB, caso eleito, de retornar os pobres ao
lugar de onde nunca deveriam ter saído: o da vergonha, o do alijamento social,
econômico e existencial.
Por isso, no dia 26 de outubro de 2014 eu voto na renovação
da esperança, voto 13, voto Dilma!
______________
* Texto recebido via e-mail. A publicação foi autorizada pela próprio autor.
**Josimar A. de Alcântara Mendes é psicólogo e professor do Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB); tem mestrado em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB).