por Marcelo Andrade**
Esta
pergunta sempre ronda a minha cabeça quando escuto dizer que quem recebe bolsa
do Estado – em especial as do Programa Bolsa Família – são “acomodados” e que dispensam o trabalho para ficar
na“vagabundagem”. Após uma conversa animada com amigos
sobre a importância do Programa Bolsa Família, resolvi assumir que também sou
mais um “vagabundo” que recebeu e recebe bolsa do Estado.
Considerei
as diferentes bolsas de estudos que recebi e fiz as contas da minha “vagabundagem”. Em valores corrigidos e/ou
equivalentes, eu sou um “acomodado” que
teve o seguinte custo aos cofres públicos:
-
2 anos de Bolsa de Iniciação Científica, CNPq (24 x 400,00 = 9.600,00).
- 2
anos de Bolsa de Aperfeiçoamento em Pesquisa (24 x 550,00 = 13.200,00). Esta
modalidade de bolsa foi extinta pelo CNPq, mas à época (1996-1998) era
equivalente à Bolsa de Apoio Técnico, valor que foi aqui considerado.
- 2
anos de Bolsa de Mestrado, CAPES (24 x 1.500,00 = 36.000,00).
- 2
anos de Bolsa de Doutorado no País, CNPq (24 x 2.200,00 = 52.800,00).
- 2
anos de Taxa de Bancada de Doutorado no País (24 x 394,00 = 9.456,00). Este
valor é uma vantagem da Bolsa do CNPq em relação à da CAPES. Como fui um dos
melhores colocados no Curso de Doutorado, fui “agraciado” com uma bolsa mais
vantajosa.
- 1
ano de Bolsa de Doutorado Faperj Nota 10 (12 x 3.050,00 = 36.600,00). Bolsa do
Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) que é uma
distinção para estudantes de doutorado que apresentam os melhores desempenhos
acadêmicos.
- 1
ano de Bolsa de Doutorado no Exterior, CNPq (13 x 4.160,00 (1.300 Euros) =
54.080,00), sim eles pagam uma mensalidade a mais considerada como Auxílio
Instalação. (Considerei a seguinte correlação 1 Euro = 3,20 Reais).
- 3
anos de Bolsa de Produtividade em Pesquisa, CNPq (36 x 1.100,00= 39.600,00).
- 3
anos de Bolsa Jovem Cientista, Faperj (36 x 2.100,00 = 75.600,00).
Em
20 anos, recebi, em valores corrigidos, R$ 326.936,00. São aproximadamente R$
1.362,24 por mês. Mas, na verdade, nunca me chamaram de “vagabundo” e
muito menos consideraram que estava recebendo uma bolsa para ficar “acomodado”.
Após
a revelação dessas cifras, meus amigos começaram a fazer várias ponderações a
fim de me remover desta terrível convicção, ou seja, de que eu sou um vagabundo
e, ainda por cima, durante duas décadas.
“Ah,
eram bolsas para você estudar e não ficar sem fazer nada!” Sim,
é verdade. Mas, por favor, não esqueçam que o Programa Bolsa Família exige que
as crianças estejam matriculadas e frequentando a escola. Então, a meu ver,
também funciona com uma bolsa de incentivo aos estudos. Estar matriculado e
frequentando a escola não significa necessariamente que alguém aprenda algo,
mas sem matrícula e frequência me parece óbvio que a escolarização esperada não
poderá acontecer.
“Ah,
mas foi um investimento público para formar um pesquisador que iria trabalhar
pelo país!” Em primeiro lugar, vale lembrar que o
Programa Bolsa Família tem sido decisivo para diminuir os níveis de
analfabetismo e evasão escolar em nosso país. Criança que não frequenta a
escola tem menos possibilidades de aprender a ler e, consequentemente, de terminar
a educação básica. Sem educação básica, ninguém poderá se profissionalizar,
quanto mais pensar em ser pesquisador. Em segundo lugar, é bom registrar que
muitos pesquisadores formados com recursos públicos não se fixaram no país e
foram trabalhar em centros de referências do exterior, mas poucas pessoas
consideram que eles são vagabundos que lesaram o país. Por fim, se o país não
forma seus recursos humanos os melhores postos de trabalhos ofertados ficam
vagos ou disponíveis a profissionais de outros países. Sabemos que hoje, por
exemplo, precisamos “importar” médicos e engenheiros. Se muitos não começarem
lá na educação básica alguns tantos não chegarão ao ensino superior e não
prestarão um serviço profissional que todos nós precisamos, tais como medicina
e engenharia. Alguém, realmente, pode acreditar, então, que manter crianças na
escola é formar uma geração de vagabundos?
“Ah,
mas era para você gastar em pesquisa, gerar conhecimento!” As
bolsas que recebi sempre exigiram um relatório final, mas não, necessariamente,
uma prestação de contas sobre como e em que gastei o recurso. Com exceções da
Taxa de Bancada do Doutorado e da Bolsa Jovem Cientista, nunca tive que
comprovar em que exatamente gastei o dinheiro. Tive sim que apresentar os
trabalhos finais (dissertação, tese, relatórios de pesquisa), tal como o
beneficiário do Bolsa Família precisa comprovar a frequência escolar e a
vacinação dos filhos. No caso das bolsas de estudo e de pesquisa, pode-se,
inclusive, gastar com “sexo, drogas e rock'n roll”, ao contrário da
Bolsa Família que o cartão magnético não pode ser usado na compra de cigarros,
bebidas alcoólicas ou em outros itens considerados não essenciais. O que quero
dizer é que o controle sobre os gastos do Programa Bolsa Família são bastante rígidos,
o que na maioria das vezes não acontece com algumas modalidades de bolsas de
estudos. Vale lembrar ainda que nunca pediram minha caderneta de vacinação, ou
seja, pude receber as bolsas de estudo como um investimento para o país e se
quisesse poderia não se preocupar com a minha saúde, o que seria um desperdício
de dinheiro público. Imagine que é possível o investimento de dinheiro público
na formação de um profissional que poderia não dar o devido retorno pelo
simples fato de não cuidar de sua saúde e não viver suficiente para prestar o
serviço para o qual foi formado.
“Ah,
mas você é um cara que tem consciência, soube aproveitar as oportunidades!” Nem
deveria responder a esta ponderação, pois o pressuposto é que pessoas pobres
não sabem aproveitar as oportunidades. Vim de uma família muito simples, de
gente trabalhadora e com poucos recursos. Meus pais tinham poucos anos de
escolaridade e tiveram oito filhos. Sem as bolsas de estudo não poderia ter
chegado aonde cheguei e nem teria ajudado outros a avançar socialmente. Se
tivessem lançado sobre mim a dúvida que não era merecedor das bolsas, talvez,
eu tivesse acreditado, desde muito jovem, que era um “vagabundo mamando
nas tetas do governo”, só para ficar estudando. Mas, ao contrário, o
privilégio (sim, bolsas de estudo num país de gente que passa fome é um
privilégio) de receber uma bolsa de estudo nunca me trouxe nenhum rótulo
negativo, mas me impulsionou, desde a iniciação científica, a estudar mais.
“Ah,
mas estas bolsas não estimulavam você ter mais filhos e se manter na pobreza”. As
pesquisas sobre controle demográfico apontam que quanto mais uma população é
escolarizada maior é o controle sobre a natalidade, ou seja, o melhor
“anticoncepcional” que existe é aumentar o nível educacional da população,
principalmente das mulheres. Assim, acredito que, em longo prazo, a Bolsa
Família ajudará no controle da natalidade, se isso for realmente um problema.
Após
as ponderações de meus amigos, conclui que investimento que exige como
contrapartida mais educação e cuidado com a saúde não poderia formar uma
geração de vagabundos. Tenho clareza que os fundos de pesquisa dos quais
participei formou uma geração de pesquisadores e, muitos deles, fortemente
comprometidos com o país. Se investimento público em estudos gera vagabundos,
então, eu sou um deles. E há muitos outros por aí. Alguns, inclusive,
contrários à Bolsa Família.
Estas
breves reflexões sobre minhas bolsas de estudos e o Programa Bolsa Família
foram publicadas numa rede social. O texto alcançou mais de 22 mil
compartilhamentos em pouco mais de uma semana. Nunca pensei que um depoimento
meu pudesse interessar tanta gente. Pude acompanhar o que outras pessoas
(maioria de desconhecidos para mim) vinculam ao meu texto. A maioria concorda,
agradece os argumentos e parabeniza por divulgar os valores, que para muita
gente é um tanto misterioso. Na verdade, os valores são públicos e é fácil
chegar a esta conta vendo o Currículo Lattes de cada pesquisador. Por outro
lado, alguns me acusam de defensor do governo, de assistencialista ou
esmoleiro. Não sou filiado a nenhum partido político e não fiz defesa de nenhum
governo, mas de um programa de transferência de renda mínima vinculada à
educação e saúde que, aliás, atravessa governos, de um e de outro partido.
Só
quis mostrar que, a meu juízo, o Programa Bolsa Família não é um incentivo à
vagabundagem. Não acho que seja “dar o peixe”, mas sim “ensinar
a pescar”, já que fortalece o ingresso e a permanência de crianças pobres
na escola. Por que manter crianças na escola – especialmente as mais pobres –
seria“dar o peixe”? Ir à escola não seria uma das maneiras mais
importante de “ensinar a pescar”? Com este simples incentivo, as
crianças mais pobres podem se manter na escola e o trabalho infantil – que,
durante gerações, condenou-os ao ciclo de baixa escolaridade, pouca
profissionalização e baixos rendimentos – deixa de ser uma alternativa atraente.
Além disso, parece-me uma contradição ser a favor de mais educação e mais saúde
e ser contra um programa que mantém crianças pobres frequentando a escola e com
a vacinação em dia.
Ninguém
– nunca, jamais – fez um julgamento pejorativo sobre o fato de eu ser bolsista
da CAPES, CNPq ou FAPERJ. Ninguém nunca me chamou de vagabundo por isso. Sempre
me olharam com respeito por eu ter uma bolsa de estudos. Mas, se algo
semelhante é feito para os mais pobres é esmola. Como assim?! Minha hipótese é
que as bolsas de estudo e pesquisa envolvem um argumento um tanto confuso sobre
o “mérito” enquanto a Bolsa Família é, a meu juízo, uma clara
ação de justiça social, de tentativa da promoção de igualdade. Assim, numa
sociedade na qual o mérito vale mais que a justiça e a igualdade, eu me tornei
um bolsista “respeitável” e os que recebem Bolsa Família são
pejorativamente “estigmatizáveis”, ou seja, são “vagabundos” e “acomodados”.
Lamento,
sinceramente, em perceber que neste país o mérito e os privilégios dele derivados
sejam mais valorizados que a justiça e a igualdade. Acho que isso sim é uma
inversão de valores. Sempre aprendi que a justiça seria a promoção das melhores
condições para todos e não apenas para aqueles que supostamente são os mais
capazes para usufruir das melhores oportunidades.
Depois
dessas reflexões duas novas questões me surgiram: (a) se eu posso receber bolsa
para pesquisar a escola, por que o menino e a menina que mais precisam da
escola não podem receber uma bolsa mínima para ir à mesma escola que pesquiso e
sou remunerado para isso? (b) será que, na verdade, me tornei um vagabundo e me
levaram a crer que eu era um pesquisador “respeitável”? Vou
continuar me questionando sobre isso.
____________________________
* Texto publicado em: Andrade, Marcelo. Será que sou mais um
vagabundo? Jornal do professor, Goiânia,
Adufg, ano III, n. 16, p. 3, jul./ago. 2014.

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