Talvez o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que
somos, mas recusar o que somos. Temos que imaginar e construir o que poderíamos
ser.
Michel
Foucault [2]
O discurso cristão tradicional está sob a mira de diversos
movimentos sociais. Não é apenas o movimento de defesa dos direitos civis dos
homossexuais que está em choque com o discurso de certas igrejas cristãs.
Vários outros setores da sociedade também vêm manifestando resistência ao discurso
religioso tradicional, especialmente no que diz respeito ao modo como certas
identidades sociais são aí construídas e representadas.
O sujeito hegemônico e homogêneo construído pelo discurso cristão
tradicional se vê cada vez mais confrontado por diversas alteridades conflitantes,
que anteriormente eram facilmente negadas ou dominadas.
Muitas igrejas, comprometidas com os interesses de algumas
identidades sociais dominantes (homem, heterossexual, branco, europeu, jovem
etc.), vêm sentindo o efeito de uma série de mudanças sociais e discursivas que
tem garantido aos sujeitos diferentes condições reais de resistência. Diversas minorias sociais – entre elas a mulher,
o homossexual, o negro, o velho – que anteriormente eram facilmente silenciadas
por instituições hegemônicas conquistaram forças sociais e políticas suficientes
para combater certas representações culturais que lhes são desfavoráveis.
É sabido que muitas instituições cristãs, dos mais variados
segmentos, foram coniventes com a escravidão. Amparado por uma leitura ideologizada
de Gênesis 9.20-27, o cristão branco europeu construiu uma representação identitária
do negro como um sujeito amaldiçoado, designado pelo próprio Deus a ser
subalterno. Essa representação deu legitimidade e sustentação não apenas para a
escravidão, mas para várias outras injustiças sociais que persistem até os dias
de hoje.
É importante dizer que não foi o discurso religioso que
construiu sozinho essa representação negativa do negro. Ocorreu aí, na verdade,
um coalisão de formações discursivas. Diversos setores da sociedade construíram
conjuntamente a subalternidade do negro e se beneficiaram dela. O problema da instituição
cristã é mais grave por causa da incoerência ética aí implicada.
Conceitos flagrantemente ideologizados como feiura, anormalidade,
entre tantos outros, são frequentemente atribuídos a alteridades não
hegemônicas. No domínio da religião tradicional, frequentemente se representam
as práticas culturais dos sujeitos diferentes como estranhas, feias, anormais. Por
exemplo, no meio cristão tradicional, as práticas culturais de matriz africana
são frequentemente rotuladas como demoníacas, animistas, anormais, esquisitas.
No âmbito da moralidade, o sujeito que não se adequa ao padrão
de comportamento normativo, hegemônico é visto como anormal e pecador. Nem é
preciso esforço para notar que o discurso religioso tradicional está fundamentado
muito mais no moralismo do que na ética. Em geral, a moralidade é usada como o
principal instrumento para obstruir, segregar e oprimir as alteridades.
Como dito, uma série de mudanças sociais e discursivas recentes
garantiu às alteridades o direito de se fazerem vistas, ouvidas, respeitadas
e incluídas. Nesse sentido, nossa
geração tem o dever e o privilégio de desmontar uma série de perversidades que,
por anos a fio, tem infernizado a vida da mulher, do homossexual, do negro, do
velho e de tantas outras minorias.
Infelizmente, o discurso cristão tradicional tem se mantido
irredutível em seu compromisso com a manutenção das assimetrias sociais.
Infelizmente, alguns grupos religiosos têm recrudescido seu discurso de negação
das alteridades e de negação de direitos humanos fundamentais, fazendo aumentar
ainda mais as tensões sociais.
Mas há boas notícias. Esse discurso reacionário não está
presente em todos os seguimentos religiosos. São muitas as igrejas,
denominações e pessoas religiosas que veem a identidade do outro a partir da
ética do amor e da aceitação incondicionais. Por estarem inexoravelmente comprometidas com
o fundamento anunciado e praticado por Jesus de Nazaré, muitas instituições e
pessoas cristãs buscam reconhecer, respeitar e incluir as alteridades sem
qualquer exigência ou violação.
Jesus jamais negou ou combateu os sujeitos diferentes. Pelo
contrário. Em muitos momentos, deixou claro que sua missão consistia exatamente
em dar acolhimento, voz e dignidade ao discriminado, ao excluído. Aliás, é
importante assinalar, o próprio Jesus foi considerado um sujeito diferente, uma
alteridade que causava desconforto. Pesou sobre ele tantas representações
desfavoráveis, que as instituições hegemônicas encontraram pouca dificuldade
para orquestrar sua morte.
As palavras de Foucault, que servem de epígrafe a este artigo,
soam como um autêntico apelo profético dirigido a todos os cristãos: “Talvez o
objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos.
Temos que imaginar e construir o que poderíamos ser”. Tomo a liberdade de
pensar a recusa identitária proposta por Foucault em dois sentidos. Não importa
se fazemos parte de identidades dominantes ou de identidades minoritárias,
devemos renunciar o que somos sempre que a dignidade humana estiver sendo, de
alguma forma, ameaçada, aviltada.
Como cristãos, devemos recusar qualquer prática identitária
(pessoal ou institucional) que obstrua e/ou exclua as alteridades. Se somos o
sujeito diferente, devemos recusar com vigor as representações negativas que
pesam sobre nós. Se somos o sujeito que
exclui o diferente, devemos recusar com veemência o modo como representamos o
outro.
O dever de recusar a própria identidade pesa muito mais
sobre os cristãos que fazem parte de algum grupo dominante. Recai sobre nós a
necessidade estabelecer a igualdade, a equidade e a justiça; recai sobre nós a
responsabilidade de resgatar o mandamento do amor ao próximo, que nesse caso significa
permitir que o sujeito diferente expresse sua existência dentro de seus
próprios padrões socioculturais, sem qualquer tipo obstrução ou violação.
A premissa de Jesus nos constrange a não estabelecer o
apagamento das alteridades como critério para amar. Não se pode chamar de amor
o vínculo que exige que o outro se torne igual a mim ou que se torne meu
subalterno para que eu o aceite. Isso não é amor. Isso é opressão disfarçada,
uma ação estrategicamente montada para o aniquilamento do outro sem que ele se dê
conta disso. Devemos nos opor a qualquer operação discursiva que negue e/ou
desfigure o evangelho do amor.
Talvez não haja mesmo necessidade de vasculhar nossos porões
para descobrir quem realmente somos. Parece muito mais urgente termos coragem
de reconhecer que nós cristãos quase sempre estivemos propensos a demonizar as
alteridades. Devemos recusar e combater veementemente a continuidade dessa
prática. “Devemos imaginar e construir o que poderíamos ser”, diz Foucault. Ora,
o reino de Deus consiste exatamente em fazer irromper um novo modo de
existência humana, no qual as relações, as identidades e as práticas humanas
sejam baseadas unicamente no amor.
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[1] Artigo publicado originalmente em: Lima, Sostenes. É preciso recusar o que
somos. Diário da Manha, Goiânia, 25
nov. 2013. Opinião Pública, p. 5. Disponível em:
[2] Foucault,
Michel. O sujeito e o poder. In: Dreyfus,
Hubert; Rabinow, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica para além
do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 239.