Depois de tudo, fica um sentimento, às vezes
escamoteado, de que nada é pleno. Na base de tudo há um vazio, que não se
preenche com nada.
“O homem é a única criatura que se recusa a ser o que
é”.
Albert
Camus[1]
“Eternidade é o tempo completo, esse tempo do qual a
gente diz: ‘valeu a pena’”.
Rubem
Alves[2]
A frase “Só
Deus pode preencher o vazio da alma humana” é muita conhecida no meio cristão.
Estou cansado de ouvi-la sem dizer nada. Resolvi escrever este artigo para
afirmar exatamente o contrário: “Há
no ser humano um vazio fundante que não se preenche com nada, nem mesmo com
Deus”.
Às vezes ouvimos no universo igrejeiro uma frase ainda
mais ousada: “Todo sentimento
de vazio é resultado da falta de Deus”. Alguns
pregadores mais espertos pensam ter encerrado o debate, quando encontram, em
grandes autores da literatura e filosofia universal, a suposta “validade
acadêmica e científica” de suas ideias. Para dar aos seus sermões sobre o tema
uma feição “erudita”, pregadores mais versados em clichês e frases de efeito
recorrem frequentemente a Agostinho, Pascal e Dostoiévski.
Entre as frases mais usadas, está certamente: “Existe no ser humano uma lacuna do
tamanho de Deus”, e sua forma
variante: “Existe no homem um
vazio do tamanho de Deus”. Ambas são atribuídas tanto a Agostinho quanto a
Pascal e Dostoiévski. Um detalhe interessante é que ainda não encontrei essas
frases nos escritos dos autores, embora sejam figurinhas carimbadas em fontes
de falsa erudição sites de
frases, como “Pensador”, do portal UOL, e “Frases”, do portal Globo[3].
(Abrindo um parêntese:
como é fácil ser erudito em Dostoiévski atualmente, hein! Basta fazer um busca
no site “Pensador” e cabrum! Lá estão todas as frases de
efeito que um falso erudito precisa para impressionar a patuleia. Encontrei,
por exemplo, a suposta frase de Dostoiévski num post de ninguém menos que o excêntrico –
para não usar um adjetivo deselegante – Marco Feliciano).
Votando ao assunto. Na vida real, fora do mundo de
fantasia pintado pelo fanatismo evangélico, parece ser difícil sustentar a possibilidade de
uma vida plena. Ouço com frequência pessoas de variadas orientações religiosas
se queixarem da angústia de existir, independentemente do quão são “cheias” de
Deus. Me parece que, independentemente das convicções teológicas e das práticas
espirituais, há no ser humano uma propensão à angústia existencial. Parece não
haver recurso espiritual que apazigue a sensação de desamparo que nos ronda. A
espiritualidade certamente mostra caminhos, ameniza a dor, mas não resolve o
problema.
Confesso que viver para mim é, em alguns momentos, uma
jornada carregada de angústia. Não há crença teológica ou mantra litúrgico que
me faça viver continuamente em paz com a vida. Sinto uma falta que não é falta
de Deus.
Algum amigo pentecostal, baseado nas frases de efeito do
discurso igrejeiro, poderia me aconselhar: “Você não percebe, mas essa angústia
vem exatamente da falta do Deus verdadeiro. Você está tão distante de Deus que
não consegue senti-lo. O Deus no qual está firmada sua fé não pode mesmo
satisfazê-lo. Quando você se encontrar com o Deus verdadeiro se sentirá
definitivamente pleno. Busque encher-se do Espírito Santo que sua vida será
outra”.
Simplesmente não consigo ver razoabilidade num conselho
como esse. O modelo de experiência religiosa aí sugerido não me toca a alma.
Logo, não há razão para buscá-lo.
Prefiro seguir outra trilha, mais complicada, eu sei.
Prefiro me firmar na ideia de que o ser humano tem diversos vazios. Um deles
certamente é preenchido por Deus, mas não todos. E há, ainda, um vazio mais
fundante, que não é preenchido por ninguém e por nada, absolutamente nada, nem
mesmo por Deus. O ser humano está condenado à incompletude. Nem Deus dá jeito
nisso.
A meu ver, foi o próprio Deus que estabeleceu essa lógica
da incompletude. Somente um ser incompleto encontra razões para continuar
vivendo; somente um ser incompleto encontra razões para mudar o mundo. A
existência de qualquer recurso – de natureza religiosa, social, política etc. –
que fosse capaz de tornar o ser humano pleno seria uma verdadeira catástrofe à
humanidade. As grandes narrativas ideológicas (religião, nacionalismo etc.) que
prometeram isso logo se transformaram em redes de fundamentalismo e opressão. O
fato é que nada pode ser suficiente para o ser humano.
Às vezes ouço pessoas sinceras dizerem ter encontrado a
plenitude em Deus. Afirmam com honestidade que Deus lhes tornou plenos. Isso me
intriga. Exemplos assim parecem contradizer o que estou discutindo.
Não quero, neste momento, argumentar que o sentimento de
completude de muitas pessoas está fundado em contradições internas veladas e
negadas, muitas das quais inconscientes. O que posso dizer neste momento
é que a consciência de incompletude exige certa capacidade de autoanálise e de
leitura do mundo que nos rodeia.
Parece haver, em nós e à nossa volta, evidências
suficientes de que não há nada que garanta plenitude consistente à vida. Sempre
há vazios. Isso não quer dizer que estamos impedidos de experimentar um
sentimento momentâneo – absolutamente fugaz – de satisfação plena. Esses
momentos existem, mas duram muito pouco. Segundo Rubem Alves, são esses
momentos que nos fazem encontrar com a eternidade[4].
Nossa alma suplica insaciavelmente por plenitude. Isso é
um indicativo de transcendência, de desejo de imortalidade, da busca pelo
eterno. Volto a dizer: diferentemente do que se diz nas interpretações
religiosas mais convencionais, essa sede de plenitude não é uma contradição a
Deus. É na verdade um rastro de Deus.
Nossa arquitetura não comporta a plenitude. O vazio é
fundante, faz parte do design original, não pode ser desfeito por nada. Penso
que o próprio Deus desenhou o ser humano com essa fenda secreta com dois
propósitos. Em primeiro lugar, para que pudéssemos transcender o nosso mundo em
direção a ele. Nosso vazio existe, não para ser saciado por Deus, mas para
apontar para ele. E, em segundo lugar, para que pudéssemos conquistar a
condição de humanos, frente a uma realidade carregada de fortes e constantes
apelos à barbárie. Nosso vazio nos permite e nos impele a redesenhar
constantemente nossa condição humana ou, conforme o termo de Heidegger, nossa
condição de ser-no-mundo.
Por exemplo, a fala humana existe porque um vazio
profundo nos compeliu a inventar um sistema simbólico que nos possibilita
representar e (re)construir o mundo. A poesia existe porque há na alma humana
uma lacuna que conduz à subversão da ordem das coisas e à construção de uma
realidade diferente, a partir dos mais variados símbolos e elementos, tais como
a palavra, o corpo, as cores, o som, as formas etc.
Enfim, somos inexoravelmente incompletos, inacabados,
vazios. A incompletude humana é, a um só tempo, um destino trágico e um destino
libertador. Nosso vazio é nossa condenação e nossa salvação. Somos destinados à
angústia, e ela nos move em direção à liberdade criativa.
[1] Camus,
Albert. O homem revoltado. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 22.
[2] Alves,
Rubem. Concerto para o corpo e alma. 11. ed. Campinas: Papirus,
2003. p. 139.
[3] Ficarei grato se alguém souber as
referências dessas frases e puder me informar.
[4] Na crônica Um único
momento, Rubem Alves contrapõe o feitiço do tempo com o encanto da
eternidade. No último parágrafo, ele apresenta um belo depoimento sobre a
eternidade presente em pequenos fragmentos de tempo: “Compreendi que a vida não
é uma sonata, que para realizar sua beleza, tem de ser tocada até o fim. Dei-me
conta, ao contrário, de que a vida é um álbum de minissonatas. Cada momento de
beleza vivido e amado, por efêmero que seja, é uma experiência completa que
está destinada à eternidade. Um único momento de beleza e amor justifica a vida
inteira” [Alves, Rubem. Concerto
para o corpo e alma. 11. ed. Campinas: Papirus, 2003. p. 139].