Caro amigo Juan Delgado,
Não sei quase nada sobre você. Sei apenas que você se chama
Juan Delgado, que é médico, que decidiu vir trabalhar no Brasil e que tem
enfrentado muita resistência.
Ver você sendo vaiado por um pequeno grupo de médicos
brasileiros me causou dor. Não sei o tamanho do sofrimento que as vaias lhe
causaram. Vi dor em seu olhar. Senti dor no meu olhar. Chorei ao ver sua dignidade
sendo aviltantemente atacada. Sua foto me comoveu e me motivou a lhe escrever
esta carta.
Eu gostaria de um dia poder ouvir sua história; gostaria de poder
ouvir a razão por que você quis vir para o Brasil, e o que você sentiu quando
chegou aqui. Não sei se algum dia isso será possível. De qualquer modo,
enquanto a hora da nossa conversa não chega, envio esta carta aberta para lhe
dizer algumas coisas importantes sobre sua vinda ao Brasil.
Em primeiro lugar quero dizer que você é muito bem-vindo ao nosso
país. Estamos felizes porque pessoas como você se dispuseram a sair de seu país
para nos ajudar. A presença de vocês fará diferença na vida de muitos
brasileiros.
Sei que a recepção que alguns médicos brasileiros têm dado a
vocês tem sido imoral e desumana. Sei que isso deve estar lhe causando algum
tipo de dor e constrangimento. Peço que não considere esses poucos médicos como
porta-vozes do povo brasileiro. Eles são minoria até mesmo dentro da classe
médica. Eles não representam os brasileiros; são representantes de si mesmos e
de seus interesses.
Imagino que você ainda não conhece bem nossa história. Por
isso vou lhe explicar rapidamente o que está na base de todo esse circo de mau
gosto que você presenciou em Fortaleza, quando saía de sua aula inaugural. Aqui
no Brasil, por muitos anos – na verdade desde sempre –, o médico tem sido
representado socialmente como um profissional que detém um saber xamânico,
divino, inalcançável. Isso faz dele um ser humano superdotado e um profissional
superior a todos os demais[1].
Ora, o raciocínio de quem acredita nessa representação e se
beneficia dela se configura mais ou menos assim:
Eu e meus pares – e somente nós – temos condições
intelectuais, éticas, sociais e políticas de decidir os rumos de nossa
profissão, mesmo quando a vida de alguém – ou de muita gente – está em jogo.
Como nossa profissão é de natureza divina, superior a todas as demais, temos o
direito a uma remuneração que faça jus a isso. Assim, para manter a média
salarial de nossa profissão num patamar justo, precisamos controlar o número de
profissionais no mercado, de modo que sempre haja falta de médicos. Assim, a
lei da oferta versus procura sempre
pesará a nosso favor. Essa é a principal razão por que não podemos de forma
alguma permitir a entrada de médicos estrangeiros no Brasil, mesmo que seja
para atuar nos lugares para os quais não vamos. Eu e meus pares precisamos da carência
de médico para manter nosso poder[2].
Pois é, meu amigo Juan, a atitude desse pequeno grupo que lhe recebeu com truculência, incitação ao preconceito e xenofobia – com bem descreveu o ministro da saúde, Alexandre Padilha – é nada mais do que uma reação descabida, desumana e imoral à perda gradual de uma condição de poder, de uma divisa social. Até agora, essa condição de poder que lhes garantia a ideia de serem profissionais intocáveis, imprescindíveis e insubstituíveis jamais tinha sido social ou politicamente confrontada. Ainda bem que os tempos mudam, e a civilização avança. Saiba que sua chegada aqui é resultado de uma mudança importante em nossa base social, cultural e política.
Juan, mais uma vez peço: releve a atitude dessa gente que
vaiou você. Para mim, você é moralmente superior à maioria deles. E digo a
razão: você não está se opondo à ida de médicos para lugares onde não há médico. Pelo contrário. Você está tendo
coragem de enfrentar o corporativismo dessa gente para dedicar o seu saber
profissional a pessoas que habitam os rincões do Brasil, lugares para onde nenhum médico brasileiro quer ir. Logo, logo, você atenderá um paciente que
dificilmente teria acesso a um médico, se você não estivesse aqui.
Caso seja muito importante para você saber o que os
brasileiros acham de sua presença aqui, pergunte, em seu primeiro dia de trabalho,
a um paciente e/ou à sua família o que eles acham do fato de o governo
brasileiro ter decidido contratar um médico estrangeiro – já que nenhum médico
brasileiro quis, é bom que se diga. É a opinião desse paciente e de sua família
que importa.
Meu amigo, há muitas pessoas precisando de você no Brasil.
Que bom que você veio. Faço votos de que sua estadia aqui lhe seja muito
agradável e proveitosa. Lhe garanto que, para nós brasileiros, já está sendo
muito bom ter você aqui. Não tenho dúvidas de que sua presença ajudará a salvar
a vida de muitas pessoas. Obrigado por ter vindo.
Abraços,
Sostenes Lima
@Limasostenes
@Limasostenes
______________________
[1] O uso da palavra doutor antes do nome de médicos e advogados mostra apenas a ponta do poder simbólico que esses profissionais detêm. Eliane Brum analisa brilhantemente, em "Doutor Advogado e Doutor Médico: Até quando?", o processo de construção histórica da representação social e das forças ideológicas que cerca o papel e atividade desses profissionais. Vale a pena ler.
[2] É importante dizer a maioria dos médicos não pensa assim. Isso está presente nas crenças e ações de alguns estudantes de medicina, de um pequeno número de médicos recém-formados e de médicos corporativistas.
É intolerável qualquer tipo de discriminação e xenofobia, seja qual for o motivo, não resolveremos nossos problemas atacando esses profissionais. Mas esse caso em questão é mais complexo. Não sou a favor da vinda dos médicos cubanos ao Brasil pois, não irá resolver nosso problema maior que é a precariedade da saúde no país. Aqui não falta médico,o que falta é infraestrutura, materiais, leitos, aparelhos novos etc.. Não podemos deixar que esses últimos acontecimentos mascarem o maior culpado ..o governo federal/estadual/municipal. Precisamos continuar a protestar contra as diferenças sociais, porque é uma vergonha o cidadão pagar uma fortuna de impostos e ser tratado de forma desumana. ISSO TAMBÉM É INTOLERÁVEL!!
ResponderExcluirPERFEITO!!! Parabéns pela coerência e sentatez com que expressa o pensamento da grande maioria do povo brasileiro...
ResponderExcluir"Caso seja muito importante para você saber o que os brasileiros acham de sua presença aqui, pergunte, em seu primeiro dia de trabalho, a um paciente e/ou à sua família o que eles acham do fato de o governo brasileiro ter decidido contratar um médico estrangeiro – já que nenhum médico brasileiro quis, é bom que se diga. É a opinião desse paciente e de sua família que importa.
Meu amigo, há muitas pessoas precisando de você no Brasil. Que bom que você veio. Faço votos de que sua estadia aqui lhe seja muito agradável e proveitosa. Lhe garanto que, para nós brasileiros, já está sendo muito bom ter você aqui. Não tenho dúvidas de que sua presença ajudará a salvar a vida de muitas pessoas. Obrigado por ter vindo."
Aí tem! Até 1999 Cuba foi sustentada pela Rússia, depois Venezuela e agora pelo Brasil varonil!
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