O que é a bíblia? Segundo a ortodoxia, a bíblia é, na sua
totalidade, a palavra de Deus revelada aos homens. Tudo que nela está é
exatamente tudo que Deus quis dizer ao ser humano. Ao se comunicar, Ele usou diversas estratégias e categorias
textuais: narrativa histórica, músicas, poemas, profecias, parábolas, cartas,
literatura apocalíptica etc. Só não usou mitos.
Por trás de todos esses procedimentos de produção e registro
textual, e dos procedimentos posteriores de coletânea e organização, está a
figura de um autor divino bastante criterioso e atento, agindo para impedir
intervenções humanas indevidas.
Em alguns textos, ainda segundo a perspectiva ortodoxa, Deus assumiu uma condição especial de
autoria: dispensou as palavras de intermediários e falou diretamente ao ser
humano, usando o discurso em primeira pessoa para comunicar sua vontade e suas
ações. Por exemplo, a narrativa que descreve os eventos que cercaram a saída
dos hebreus da terra do Egito em direção a Canaã apresenta uma série de
punições anunciadas e aplicadas pelo próprio Deus. Essas
punições (ou pragas) culminaram na matança fria e sorrateira dos filhos
primogênitos de todos os egípcios.
De acordo com a ortodoxia, narrativas como essa do Êxodo são
integralmente factuais e históricas. Mais que isso: registram ações
criteriosamente pensadas e executados pelo próprio Deus, sem qualquer
intervenção humana.
Como se nota, a perspectiva tradicional concebe a bíblia como um livro supra-histórico, supra-científico etc. Esse livro, diferentemente de
qualquer outro já escrito, não é humano. Portanto, está além de qualquer
juízo, crítica, análise. Nenhuma evidência em contrário é capaz de derrubar a
historicidade da narrativa cosmogônica do Éden, bem como de outras as
narrativas míticas e/ou literárias, como a do dilúvio, de Babel, da jumenta de
Balaão, de Jonas, de Jó etc.
Em síntese, pode-se dizer que a ortodoxia fundamentalista assume
que a bíblia:
a) contém toda a revelação de Deus;
b) embora tenha sido escrita por seres humanos, não contém
erros, já que os autores humanos não são propriamente os autores; são uma
espécie copistas ou meios de transmissão;
c) apresenta todos os planos de Deus para o ser humano;
d) descreve a antropogênese e boa parte do percurso
antropológico, social e histórico do ser humano;
e) mostra a história de uma etnia-nação escolhida
(exclusivamente) e protegida por Deus;
f) registra uma versão factual da história de Israel;
g) é formada por um conjunto de livros selecionados pelo
próprio Deus, com pouca (ou quase nenhuma) interferência humana.
Existem, certamente, outros pontos que estão na base da
compreensão da bíblia como a palavra plena de Deus. Contudo, os que foram mencionados acima são
suficientes para nos mostrar o quanto é difícil, para quem tem um mínimo de
sensatez intelectual, navegar no mundo da fé cristã sem chocar, sem desmontar
alguma coisa.
Praticamente todos os pontos mencionados apresentam
inconsistências elementares, facilmente detectáveis. Basta um pouquinho de
racionalidade e uma bocadinho de conhecimento de filosofia, história,
antropologia, sociologia, biologia, ciência política, linguística, análise do
discurso, entre outras ciências, para saber que narrativas como a do Éden, do
dilúvio, de Jonas não são narrativas históricas, mas mitos. Talvez até tenham
algumas pitadinhas de historicidade, mas no plano geral são claramente
narrativas que expressam uma compreensão de mundo pré-científica.
É importante dizer que o fato de serem narrativas míticas
não implica que sejam vazias de significado ou inúteis. De modo algum. Os mitos
são componentes fundamentais da história cultural humana. Existem desde que o
ser humano se viu na condição de humano e continuam existindo até hoje, apesar
do avanço da ciência. Pode-se dizer que sem mito não há ser humano. Os mitos
em geral, tanto os bíblicos quanto os ameríndios, gregos, nórdicos, persas etc.,
são narrativas que nos mostram certas nuances do ser humano que seriam
indiscerníveis e/ou intransmissíveis de outra maneira.
Portanto, o fato de se dizer que a bíblia está carregada de
mito não a invalida como tal. Ela continua sendo bíblia, mas com outra feição.
Posso perfeitamente continuar recorrendo à bíblia como um livro que inspira e
orienta a vida cristã, mesmo sabendo que a narrativa de Noé é um mito.
Para ser cristão, não preciso renunciar minha dignidade
racional. Posso ler os textos que narram as campanhas militares de Davi – desde quando ele era um guerrilheiro fora da lei até quando tomou o trono de Saul –
sem ter de aceitar que Davi fez o que fez (se é que fez mesmo tudo aquilo que
está narrado!) porque Deus queria que ele fizesse.
O mais provável é que Davi tenha sido um guerreiro tribal sanguinário e vingativo. É difícil aceitar que Deus tenha aprovado suas ações. Portanto, quando se diz
que Davi foi um homem segundo o coração de Deus, é preciso que se pergunte
imediatamente: “De qual Deus estamos falando?”. A resposta mais
sensata para essa pergunta seria: “Estamos falando do deus construído pela assessoria de imprensa da
monarquia tribal davídica”.
Pois é, os textos de I e II Samuel, que narram a ascensão de
Davi ao trono, mostram claramente que essa história de imprensa oficial a serviço do poder
existe há muito tempo. Certamente, começou a operar bem antes do surgimento dos nossos jornais e
revistas.
Só para provocar: Será por que Saul entrou para a história
como vilão e Davi como mocinho? Não resta dúvida. A versão final da história sempre foi escrita por quem tem mais poder.
Eu leio a bíblia com a serenidade que uma fé cristã, livre e insurgente, exige. Não me sinto obrigado a ignorar o óbvio, a renunciar a sensatez, o juízo e a razão. Ser cristão não significa ser ingênuo.