Quando chegamos a entender que são as coisas espaciais
que estão constantemente escapando, nós nos damos conta que o tempo é aquele
que nunca expira, que é o mundo do espaço que está rolando através da vastidão
infinita do tempo. Assim, a temporalidade pode ser definida como a relação do
espaço com o tempo.
Abraham Joshua Heschel¹
É a nossa capacidade de interpretar o mundo a partir de uma
intricada relação entre o que foi (passado), o que é (presente), e o que será
(futuro), que nos faz homo temporalis. Segundo
o que sabemos até o momento, apenas os humanos têm condições de interpretar a realidade
(física e social)² sob a ótica da sucessão temporal. Parece que somos o único ens temporalis.
Para a árvore, só existe a árvore tal como ela é, com todas
as informações naturais de que ela dispõe, em sua estrutura, no momento. Não há
memória da semente; também não há esperança do fruto. A árvore não se
interpreta temporalmente. Ela apenas existe.
Nós humanos somos diferentes porque não apenas existimos; nós
somos. E ser significa incorporar história. Para mim, a história é uma das
grandes metanarrativas humanas, talvez uma das poucas que jamais poderão ruir.
O ser humano tem compulsão para significar o tempo. Parece haver em sua
ontogênese uma narratio temporis.
Somos porque temos história; somos porque há uma narrativa do tempo que nos
constrói. Em última instância, só é aquilo que tem história. Não havendo
história, não há ser. Há apenas a coisa, não o ente.
Tudo que existe no nosso entorno acaba também se
transformando de res (coisa) em ens (ser), porque passa a incorporar as
dimensões do tempo. É por isso que para nós uma árvore não é apenas uma árvore.
Em potencial, é também uma semente, uma fruta, uma sombra, uma cadeira, um
andaime, um cavalete, uma moldura etc. etc. A história transforma a res num ens, na medida em que projeta nela a existência de uma
infinidade de seres, transformando-a num conjunto aberto de entidades
potenciais, já conhecidas e ainda por conhecer.
Para nós, temporales et
historici entes, nada é apenas o que
é. Temos consciência de que tudo está sob o efeito da sucessão do tempo.
Sabemos que tudo é o que é, porque é o que foi. Também sabemos que tudo será o
que será, porque será o que é e o que foi. Esse saber temporal faz parte de
nossos esquemas cognitivos mais elementares. Parece ser impossível viver à
margem da interpretação do tempo. Estendendo o pensamento de Sartre, eu diria que, além de
estarmos condenados à liberdade, também estamos condenados à temporalidade. Somos prisioneiros do tempo.
Se você está pensando que tudo isso não passa de filosofia
de botequim, eu confirmo: é mesmo. A consciência do tempo é algo tão espontâneo
que nem nos damos conta do quanto o tempo é uma categoria complexa. A maioria
de nós só pensa no tempo quando há algum estímulo. Às vezes, só depois de uma conversa
de botequim conseguimos nos interrogar: que efeito o tempo exerce sobre mim?
Como o passado e o futuro estão orientando o meu presente? Diante da condição
de prisioneiros do tempo, nos resta buscar a melhor maneira de viver essa
prisão. Podemos transformar nossa consciência do tempo numa porção de sabedoria
que nos ajuda a viver melhor. É isso que tenho buscado ultimamente.
¹ Heschel,
Abraham Joshua. O Schabat:
seu significado para o homem moderno. São Paulo: Perspectiva, 2012. p. 136
² Será que existe mesmo uma cisão entre
mundo natural e social? As epistemologias pós-modernas têm mostrado que a
concepção de um mundo externo ao ser humano, passível de ser estudado e
compreendido objetivamente, conforme apregoa o paradigma epistemológico
moderno, não passa de mito já definitivamente superado. Boaventura de Sousa
Santos (210, p. 72), com perspicácia e precisão, nos diz: “não há natureza
humana porque toda natureza é humana”. Realmente está cada vez mais difícil
aceitar que ser humano e natureza não estejam dentro de uma relação
inerentemente intricada.
Contudo, pela complexidade do tema e por
estar um pouco foro do foco deste ensaio, deixo essa discussão para outro
texto. Por hora, convém assinalar apenas que, logo, logo, estaremos dispostos a
admitir que “o mundo, que hoje é natural ou social”, amanhã poderá ser ambos
num só, abrindo caminho para uma interpretação do mundo “como um texto, como um
jogo, como um palco ou ainda como uma autobiografia” (Sousa Santos, 2010, p. 72), algo no qual o sujeito e objeto
estão inextricavelmente fundidos.
Sousa
Santos, Boaventura de. Um
discurso sobre a ciência. 7.
ed. São Paulo: Cortez, 2010.
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