Dizem os
fundamentalistas... Ah! Você
não sabe quem
são eles.
Vou explicar. Fundamentalistas são pessoas muito religiosas (se católicas, protestantes,
muçulmanas ou judias pouco importa, pois todas
pensam do mesmo jeito).
Elas pensam que
Deus é dono
de um jornal.
Não só
dono como
também redator-chefe, repórter e linotipista.
Nesse jornal, que
se chama O Correio Divino,
tudo sai diretamente
da pena de Deus,
os editoriais, as reportagens, os artigos, os obituários,
com a devida
autenticação dos carimbos do cartório dos anjos.
Por essa razão,
tudo o que
é ali publicado tem de ser
acreditado tintim
por tintim,
nos seus
mínimos detalhes:
Deus não
espalha boatos falsos,
só para aumentar a venda. O Correio
Divino publica só
o que aconteceu de verdade,
não importa quão
fantástico possa parecer;
para Deus tudo é possível,
como o portento
de Josué, que fez parar
o Sol no meio
do céu, e o do profeta
Jonas, engolido e vomitado por um peixe, depois de gozar de sua hospitalidade
visceral por três
dias.
Pois eles,
baseados no tal
jornal, afirmam que
Deus plantou um
jardim maravilhoso
há muito tempo,
quase 6 mil
anos, muito
longe, lá
pelas bandas do Iraque. Por um desentendimento entre
Deus, o casal
de jardineiros e uma cobra, Deus
expulsou os dois de lá
e fechou a porta do Paraíso,
que nunca
mais foi achado.
Por lá,
hoje, só
se acha areia,
guerra e petróleo,
e dizem os entendidos que foi isso que restou do jardim
de Deus, transformado em óleo preto por artes do Demo.
Acho um desperdício. Se o que Deus queria
era só
plantar um paraisinho, por
que gastar tempo e energia
fazendo um mundo
tão grande,
tão bonito,
o Rio Amazonas,
o Himalaia, o mar, as praias com coqueiros, os riachinhos nas montanhas,
o Pantanal e o Lago
de Como, que
é onde estou agora?
Teria sido muito mais
lógico fazer um mundo do tamanho do jardim,
seria mais fácil
tomar conta, e assim tudo
caberia num asteróide, como aquele onde morava o Pequeno
Príncipe.
Claro que isso tudo que falei é brincadeira,
pois não
acredito em nada
disso. Eu leio os textos
sagrados como
quem lê
poesia e não
como quem
lê jornal.
Prefiro pensar que
Deus é poeta
a imaginá-lo como dono
de um jornal.
Existirá ofensa maior
para um poeta que perguntar se o seu poema é reportagem?
Sendo esse o caso,
posso bem sonhar que Deus não fez um Paraíso só, ele fez muitos,
tantos quantas são
as suas criaturas,
para cada uma
delas um Paraíso
diferente, e os espalhou pelo
mundo inteiro.
Em volta
de cada pessoa
existe um Paraíso
diferente do seu, como
se fosse uma bolha transparente.
Você já viu?
Não. Você nunca
viu. Sugiro consultar um
oculista, alguma coisa
deve estar errada com
os seus olhos,
você não está
vendo direito. Diagnóstico
sugerido pelos mesmos
poemas sagrados,
que atestam que
o primeiro dano
do pecado foi estragar
nossa visão.
Com o que
concorda Alberto Caeiro, oftalmologista de renome,
que diz que
não é bastante
não ser cego para ver
as árvores e as flores.
O mundo está cheio
de cegos com
vista perfeita.
Quem oferece colírios curativos para olhos cegos (muito embora só sejam cegos para o belo, tendo vista muito boa
para o feio!)
é um místico medieval,
Ângelo Silésio, que escreveu num dos seus poemas: Quem, dentro
de si mesmo,
um Paraíso
não for capaz
de encontrar, não
será capaz também
de, um dia,
nele entrar...
Não quero fazer inveja
a ninguém, mas
eu estou no Paraíso,
aqui na Itália, num castelo,
às margens do Lago
de Como, cercado
de montanhas, que
eu vejo agora
através da janela
do meu quarto
enquanto escrevo. São
três e meia
da tarde, o Sol
brilha forte,
o castelo está circundado de parques,
mais de dez
quilômetros de caminhos
pelos bosques
de coníferas altíssimas, ninféias, fontes com
repuxos, o cheiro da resina dos pinheiros
vai até o fundo
da alma, o silêncio
só é quebrado
pelo apito
dos barcos lá
longe e pelo repicar do sino da igreja que
acabou de bater. Bateu também
dentro de mim
uma saudade não
sei de quê, eu
sou uma saudade imensa
cercada de carne
por todos
os lados...
Fiquei
imaginando Deus, andando pelos caminhos onde eu andei,
no vento fresco
da tarde, do jeitinho como diz o texto
sagrado. Ele
deve ter sentido
a mesma coisa
que eu
senti: quanto maior
era a beleza,
maior também
era a tristeza.
A beleza, em solidão, é sempre triste. Beleza solitária dá vontade
de chorar. Para ser boa, a beleza exige, pelo menos, dois pares de olhos tranquilos se olhando, dois
pares de mãos
amigas brincando, e bocas de voz mansa
sussurrando...
Acho que foi naquele momento,
quando Deus
sentiu tristeza ao ver a beleza, que ele entendeu por
que Adão estava tão
deprimido: deuses e homens
são muito
parecidos... E foi então que ele
aprendeu – pois Deus
também aprende – que não é bom
que o homem
fique só. Fez dormir
Adão, e ordenou que aquilo
que ele
sonhasse, aquilo mesmo
acontecesse. E ele sonhou com dois olhos tranquilos, duas mãos
brincalhonas, e uma voz mansa... E assim
nasceu a mulher, o sonho
mais belo
do homem, para
trazer alegria
ao Paraíso...
Fico mesmo é com dó de Deus. Os entendidos, que
privam de sua vida
íntima, teólogos,
clérigos, papas
e cardeais, dizem que
não devo me
preocupar, pois Ele está sempre
em boa companhia,
tem mãe puríssima, que
nasceu sem pecado.
É um filho
obedientíssimo, que sempre
faz o que lhe
é mandado. Dizem que
isso basta
para a felicidade
de Deus.
Discordo.
Sem o olhar
dos olhos apaixonados, sem o toque das mãos brincalhonas, sem
o som da voz
mansa, nem
Deus pode se sentir
feliz.
Essa é
uma felicidade possível
aos homens. Mas,
e Deus? Andando sozinho
pelo jardim. Coitado! Tanta beleza. Tanta tristeza...
15/8/93
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Rubem Alves. Teologia do cotidiano. São Paulo: Olhos D'água, 1994. p. 62-65.