Os vícios estão sempre à espreita da alma querendo lhe
consumir. Eles não pedem licença; também não entram pela porta da frente. Eles
se intrometem matreiramente na alma por aberturas pouco vigiadas. Uma vez
dentro da alma, logo se dirigem para os recantos e porões. Lá se escondem para
agir à surdina. De todos os vícios, a inveja é o que mais tem êxito na tarefa
de se esconder, de se dissimular. Só podemos nos dar conta de que ela está
aninhada na alma se estivermos dispostos a ler suas criptografias. Por exemplo,
o incômodo pelo sucesso alheio (especialmente de quem o alcançou legitimamente)
é um sinal de que a inveja já pôs seu negócio clandestino a funcionar, abrindo sucursais
em diversas vielas e becos da alma.
A inveja é um vício complicado e difícil de ser combatido.
Só quando dissecamos sua estrutura é que nos tornamos capazes de lhe fazer uma
oposição consistente e de minar suas bases. Façamos o exercício de
descortiná-la. A seguir, desenvolvo uma reflexão sobre alguns traços de sua
anatomia, com o objetivo de nos preparar para combatê-la com efetividade.
A
inveja é mal vista, logo tem de ser negada. Talvez a inveja seja o vício mais difamado
e rejeitado. Não é bonito ser invejoso. Outros vícios como a raiva, o orgulho
etc. são mais higienizados e aceitos socialmente. Não é tão feio assim ser esquentado.
Também não causa tanta vergonha ser orgulhoso. Quem projeta orgulho não arranha
drasticamente sua própria imagem; talvez até ganhe com isso. Mas quando se fala
em inveja, a coisa é bem diferente. Ela é um vício sujo, humilhante e
degradante. Ninguém gosta de se mostrar invejoso. Praticamente todas as pessoas
reagem com furor quando são identificadas como invejosas. Toda essa
representação negativa da inveja só contribui para que ela exista na clandestinidade
da alma. Ela é enxotada para os porões e só sai de lá disfarçada. Em boa parte
dos casos, sob um disfarce tão bom que nem o invejoso percebe.
A inveja
não oferece ganho real e nem gratificação duradoura. A inveja não melhora a
vida do invejoso e nem lhe dá prazer. Antes, lhe cria uma série de problemas
relacionais, levando-o a se corroer solitariamente. O invejoso vive possuído por uma raiva insana dos
outros (porque são prósperos) e de si mesmo (porque é medíocre). A inveja nunca
se sacia porque não age para fora. Diferentemente da raiva, que exige uma ação
externa para se locupletar, a inveja, por ser preguiçosa e covarde, só age
internamente; só ataca o mais fraco, o próprio invejoso. Ela sempre quer ver
mais desgraça na vida do outro, mas é impotente para fazer isso acontecer. Ela sempre
se frustra: ou porque o outro só prospera ou porque a desgraça que sobreveio é
pequena demais aos seus olhos.
A inveja subverte
a fonte da felicidade. Em vez se basear no que é bom, a inveja arma sua estrutura sobre o que
é mau. Ambrose Bierce apresenta, no Devil’s Dictionary[1] (Dicionário
do Diabo), uma definição de felicidade que se ajusta perfeitamente à fisiologia
da inveja:
“Felicidade – uma sensação agradável proveniente da contemplação da
miséria alheia”.
A inveja se fundamenta no infortúnio, na desgraça, na miséria,
e extrai daí fiapos de felicidade para o invejoso. Ambrose Bierce deixou de
colocar em sua definição que essa sensação de felicidade é absurdamente efêmera e só se repete
quando a desgraça alheia se aprofunda. A inveja constrói, então, uma estrutura
de felicidade baseada na voracidade e insaciabilidade, tornando o invejoso
viciado em desejo de desgraça. Como esse desejo nunca é plenamente satisfeito, o
invejoso nunca experimenta a felicidade, mas apenas fragmentos extáticos de um
prazer mórbido. A felicidade não se instala e nem se mantém quando o mal é o
fundamento. Logo, todo invejoso é profundamente infeliz e morbidamente masoquista.
Termino este
artigo com uma história muito conhecida. Eu a reescrevi e adaptei aos
propósitos deste artigo[2]:
Dois
homens foram convidados para uma audiência com o rei. Não foi por coincidência que o rei convocou
justamente aqueles dois homens. Eles tinham vícios que os tornavam próximos e
distantes ao mesmo tempo. Um era ganancioso e o outro, invejoso.
Os
dois convidados chegam ao local do encontro. Estão meio apreensivos, um pouco amedrontados.
Sentem-se interiormente culpados, embora nenhum deles se considere invejoso
ou ganancioso. Eles tinham visto no edital
de convocação que cada um teria direito a um pedido, mas a essa altura não esperavam
coisa boa. Talvez o rei lhes desse o direito de pedir um castigo mais brando ou
coisa parecida.
No horário marcado, os
dois súditos são chamados à sala real. Começa a audiência. O rei, vendo o
terror estampado no rosto de cada um, diz:
_
Não tenham medo desse encontro. Hoje é um dia de sorte, não de infortúnio. Vocês
foram convidados para receberem um presente. Peçam o que quiserem e lhes darei.
A
fala do rei os aliviou. De imediato cada um começou a fazer planos para o
pedido, mas em silêncio. Um dos convidados esboçou fazer uma pergunta sobre
haver ou não alguma condição que governasse o pedido. O rei de imediato o
interrompeu:
_
Só há uma condição. Apenas um de vocês poderá fazer o pedido. Este receberá o
que pedir e o outro receberá o que for pedido em dobro. Não há nenhuma regra
que estabeleça quem deve fazer o pedido. Isso será decidido entre vocês.
Logo
se instalou um drama na mente de cada um. O ganancioso pensou:
_
Se eu fizer o pedido vou ganhar menos que eu poderia ganhar. Devo convencer meu
companheiro a fazer o pedido.
O
invejoso, por sua vez, pensou:
_
Se eu fizer o pedido ele vai ganhar o dobro. Eu não suportaria vê-lo ganhar mais
que eu. Devo convencê-lo a fazer o pedido.
Eles discutiram por alguns minutos, até que o ganancioso convenceu o invejoso a
fazer o pedido. Este pensou consigo:
_
Preciso encontrar uma forma de fazer com que o meu pedido seja pior para ele.
Mas é difícil. O rei foi muito sábio.
Num
momento de profunda iluminação, sua inveja lhe forneceu uma ideia masoquista, mas
suficiente para lhe satisfazer a compulsão por desgraça alheia. Antes de lançar
o pedido ao rei, o invejoso se certificou da regra:
_
Qualquer coisa que eu pedir meu companheiro receberá em dobro? É isso mesmo, majestade?
Qualquer coisa, mesmo?
_
Sim, disse o rei.
O
invejou então pediu:
_
Quero que arranque um dos meus olhos.
Moral da
história: a inveja não se importa com o sofrimento de quem lhe dá morada; o que ela quer mesmo é ver o infortúnio do
outro. A inveja tem pavor de bem-estar. Ela
leva o invejoso a condições degradantes só para manter a obsessão por desgraça alheia. A inveja compele o invejoso à autoperversidade para se
manter momentânea e morbidamente feliz.
[2] Li uma versão sumária dessa história em: Os Guinness. Sete pecados capitais. São Paulo: Shedd Publicações, 2006.
Caro amigo, obrigado pelo envio dos links.
ResponderExcluirO seu texto nos chama para uma analise interior... E eu não preciso dizer qual a pergunta que fiz a mim mesmo. Quero orar DEUS, para que todo resquício de inveja saia da minha alma e também agradecer ao SENHOR por sua vida, pois tenho notado que você tem investido o seu tempo para escrever com qualidade. Só me resta incentivá-lo nessa jornada benéfica a todos.
André