Há alguns anos começou no Brasil um
“movimento profético”. Não sei bem de onde veio. Pra falar a verdade,
não estou interessado em saber. Só estou escrevendo sobre esse tal movimento
porque não aguento mais ver a palavra profético ser conspurcada pelo mercado religioso. Já notaram que tudo hoje em dia é profético: da adoração à
riqueza. Fiz uma pequena busca no Google e, para minha certeza, encontrei uma
lista enorme de práticas religiosas e litúrgicas grosseiramente associadas à palavra que dá nome a um agente social, cuja memória exige respeito: o profeta. Vejam as pérolas que achei:
Adoração profética
Louvor profético
Louvorzão profético
Música profética
Dança profética
Culto profético
Bandeira profética
Sacerdócio profético
Ministração profética
Unção profética
Campanha profética
Transe profético
Mover profético
Mover profético
Êxtase profético
Teatro profético
Coral profético
Entrega profética
Oração profética
Jejum profético
Línguas proféticas
Batismo profético
Ceia profética
Oferta profética
Prosperidade profética
Riqueza profética
Obviamente a lista está
incompleta. Não dá pra esgotá-la. Esse pessoal é muito criativo e muito esperto.
Esse movimento todo em torno da
palavra profético, infelizmente, não tem nada a ver com o resgate de um movimento social que surgiu na sociedade judaica monarquista há aproximadamente 2800 anos. O uso abundante da palavra profético nos nossos dias não passa de uma grande jogada de marketing. O discurso publicitário é estratégico por excelência. Age estrategicamente visando a propósitos específicos. Nos termos da distinção proposta por Habermas (1984), a publicidade está situada no campo da linguagem estratégica, muito mais que no campo da linguagem comunicativa[1].
“Novos negócios precisam de novas palavras. E
quando o negócio é velho, mais ainda!”, diz pragmaticamente a publicidade. Não há como continuar explorando
indefinidamente um negócio sem renovar sua cara. É por isso que surgiram a “Nova Skin”, o “Novo Civic”, o “New Fiesta” etc. A publicidade tem como objetivo nos convencer
de que tudo é novo. Porque, se é novo, precisamos comprar. As coisas que temos são velhas; já não servem mais. Somos enredados pela a ilusão de que é possível refrear o
envelhecimento comprando coisas novas. O que ninguém diz é que o novo é apenas
uma maquiagem verbal. A retórica publicitária faz com que coisas velhas sejam instantaneamente
transformadas em novas, bastando renovar palavras ou inventar palavras novas. Sem
os dotes retóricos, o que vemos é uma realidade bem diferente: tudo envelhece, até mesmo a palavra novo. Fico pensando sobre qual será o recurso publicitário que vai ser usado para vender o “Novo Civic” depois que o
novo que há em seu nome envelhecer?
Será que haverá um “Novo Novo Civic”? Bom, deixemos isso de lado e concentremos no que é da conta deste artigo.
Resumindo toda essa divagação sobre o discurso publicitário em uma única frase, teremos: não há como fazer um produto explodir no mercado sem colar nele uma
buzzword. É preciso associar ao nome
do produto uma palavra que vai dar cara ao negócio, que vai vendê-lo, que vai
fixá-lo na mente do consumidor, que vai mobilizar revendedores e vendedores,
que vai fortalecer as franquias, que vai ser inserida na missão e visão de
empresas associadas etc. Sobretudo, é preciso criar uma identidade própria para o produto, capaz de torná-lo diferente de todos que estão disponíveis no mercado. Fairclough (2001) nos diz que
“as condições de mercado contemporâneas requerem que séries de empresas comercializem produtos bem semelhantes; para estabelecer seus produtos como diferentes, sua identidade tem de ser construída”[2].
Pois é, o mercado gospel, sabendo disso, fez um investimento de peso na palavra profético. E logo percebeu que essa seria uma jogada de muito sucesso. O pessoal do mercado religioso evangélico notou que colar em seus produtos o adjetivo profético agrada o consumidor. Daí a invenção de coisas como “adoração profética”, “ministração profética”, “dança profética”, “louvor profético” e até “riqueza profética”. A palavra tem alcançado uma circulação quase viral no meio gospel brasileiro.
Pois é, o mercado gospel, sabendo disso, fez um investimento de peso na palavra profético. E logo percebeu que essa seria uma jogada de muito sucesso. O pessoal do mercado religioso evangélico notou que colar em seus produtos o adjetivo profético agrada o consumidor. Daí a invenção de coisas como “adoração profética”, “ministração profética”, “dança profética”, “louvor profético” e até “riqueza profética”. A palavra tem alcançado uma circulação quase viral no meio gospel brasileiro.
Estudos em análise do discurso nos mostram que a publicidade consegue êxito na tarefa de projetar comercialmente uma palavra através de três estratégias
semântico-discursivas. A primeira consiste em inventar tanto a palavra (matéria sonora e
gráfica) como o significado desejado. Lança-se então uma nova palavra no mercado linguístico. Podemos dizer, adotando os termos de Saussure, que são criados tanto o significante quanto o significado. A segunda consiste em inventar
significados novos para uma palavra velha, mas sem desconstruir ou apagar os significados
antigos. Constroem-se, assim, metáforas com a palavra. A terceira, muito mais
audaciosa, consiste em esvaziar todo o significado de uma palavra já existente, deixando-a
completamente líquida e plástica, sob o ponto de vista semântico, para que possa
se adaptar a qualquer contexto, tanto textual e quanto discursivo. Essa
terceira estratégia é mais ousada porque é muito difícil destituir os
significados fundantes de uma palavra; é muito difícil fazer o interlocutor
bloquear o histórico semântico de qualquer palavra que seja. Isso é quase uma
proeza. Só mesmo a publicidade para conseguir tamanha façanha.
Pois foi essa última estratégia
que o mercado gospel usou com a palavra profético.
Arrancou dela sua história semântica,
deixando-a esvaziada de todos os traços que a inserem no campo da militância
social e política. O significado fundante desse vocábulo remete a uma prática sociopolítica
desenvolvida em Israel, na época da monarquia. O profeta era um agente social que
denunciava os desmandos praticados pelos poderosos do meio político, jurídico e
religioso. Frequentemente reis, juízes e sacerdotes, empunhados da força que o
poder lhes garantia, se embrenhavam na corrupção, explorando e oprimindo o
povo. Quando a coisa se tornava insuportável, irrompia o profeta com a boca no
trombone. Ele denunciava tudo e todos; desmascarava a corrupção e reclamava o
direito dos oprimidos. O discurso profético era um manifesto recoberto de
denúncia e exigência de libertação. Não é de surpreender que os profetas fossem
alvo de terríveis perseguições. Naquela
época, tudo que era profético era frontalmente oposto à coroa, ao judiciário
e ao clero. Para ser profeta era necessário haver disposição e coragem para desconstruir o discurso dessas três esferas públicas.
No profetismo de hoje, tudo
essa memória sociopolítica construída um torno da palavra profeta é esvaziada. Para o mercado
gospel, ser profético não significa nada. Não há intensão de manter ou agregar
significado algum à palavra profético em
si mesma. O que se quer é atribuir ao
termo um valor comercial, tornando-o adaptável a qualquer produto religioso,
especialmente àqueles já envelhecidos e com pouco apelo de consumo. Dizer que uma
música é profética constitui uma estratégia muito eficiente para convencer o consumidor
de que está diante de um produto religioso novíssimo, do qual tem extrema
necessidade. Portanto, todo esse frisson
em torno da palavra profético nada mais
é do que uma jogada retórico-publicitária que visa impulsionar o consumo
religioso. Colocar o termo profético ao
lado de produtos religiosos como adoração, culto, música, dança, oração, campanha,
unção etc. dá-lhes uma roupagem de novo, criando um apelo de consumo quase
irresistível.
Não digo que não haja dança
profética. Mas se existir não tem nada a ver com essas coreografias de mau
gosto que a gente tanto vê nas igrejas evangélicas por aí. Dança profética,
para ser profética de verdade, tem de ser uma prática sociopolítica. Nesse sentido,
eu estou muito mais disposto a encarar a apresentação de um grupo de jovens
ligado ao Afroreggae como um evento de dança profética (em virtude do projeto
de transformação sociopolítica aí incorporado), do que a apresentação de um grupo
de dança evangélico, que só pensa em liturgia e nada faz por mudança e
transformação social.
Sostenes
Lima
@Limasostenes
@Limasostenes
_______________
[1] Jürgen Habermas. Theory of communicative action. London: Heinemann, 1984. v. 1.
[2] Norman Fairclough. Discurso e mudança social. Brasília: Editora UNB, 2001. p. 259.
Olá Sóstenes.. em primeiro lugar muito obrigado pelo comentário. Quando tratei sobre ateus no meu blog, falei especificamente do militante para mim este é muito chato até que uma testemunha de jeová batendo na sua porta 8 horas da manhã
ResponderExcluirDepois gostaria de parabenizr pelo post. Eu já tinha lido ontem, pois foi publicado no Pavarine. Gostei muito da sua critica a essa moda gospel que está enchendo as igrejas , mas que não tem qualquer profundidade espiritual. adoro ler coisas na área de teologia e ciências da religião. É uma área que me interesso bastante, especialmente na relação entre religião e sociedade que foi a linha e pesquisa do meu TCC em ciências sociais.
Espero sempre está lendo seus posts.
Estou te seguindo..
Seu texto é muito bom, muito bem escrito. Sou cristã e fico revoltada quando a verdade do evangelho é substituída por modismos. Precisamos viver à luz das escrituras e não baseados nos "achismos" de tantos falsos profetas.
ResponderExcluirSeu texto é muito bom, muito bem escrito. Sou cristã e fico revoltada quando a verdade do evangelho é substituída por modismos. Precisamos viver à luz das escrituras e não baseados nos "achismos" de tantos falsos profetas.
ResponderExcluiressa sim é uma mensagem, palavra, recado proféticos. Parabens Sóstenes. Chega de tanta liturgia vazia, sem propósito, que defensores de sí mesmo se comportam como portadores da verdade, negando tudo que agem com seus atos nefastos.
ResponderExcluirsaulo sartre
Parabéns pela avaliação histórica e critica do termo profético. Que pastores serios saibam varrer esse "sacro consumismo" de suas comunidades e levem seus correligionarios a uma fé cristã em que o cristo seja o fim em se mesmo de sua devoção e não o meio.
ResponderExcluirMuito bem dito!
ResponderExcluirGostando de conhecer seu blog, ler seus textos e acompanhar seu pensamento.
Um abraço.
Patrícia Fonseca
http://blogdaperegrina.blogspot.com/
Muito bom seu texto! de clareza meridiana, consistente e verdadeiro, mandou bem! meus parabéns, Sóstenes!
ResponderExcluirCara... muito bom mesmo. Na verdade o povo gosta de ser iludido. O que já é ou existe não tem graça. O importante é ter poder para transformar o que virá, o que existirá. É mais fácil profetizar do que estudar, ajudar, compartilhar, reconhecer... Quanto mais gente profetiza, mais gente assombração aparece.
ResponderExcluirOlá Sóstenes,
ResponderExcluirObrigado por profetizar contra as falsas profecias. No livro de Jeremias, disse Deus. “ Se alguém profetizar algo que eu não mandei profetizar, esse profeta morrerá” ! Então o que vemos? A graça de Deus em pleno exercício de misericórdia; do contrario, todos os quais usam indevidamente a autoridade de um profeta, estariam mortos. O fato é que as igrejas de um modo geral estão gordas, preocupadas em apenas fazer um espetáculo da fé. Ao ponto com bem lembrou, as danças e movimentos por uma melhoria social do povo gentílico tem mais sentido na palavra profética! . Assim sendo, suporte por mais um pouco de tempo todo esse movimento “profético”.
Anápolis,17/03/2012
Em nome do Amém.
Paulo Coutinho ( Paulinho)
Que Deus continue te usando como profeta Dele!
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